Saturday 30 May 2009

A MENINA DOS OLHOS DE PRATA



David Lynch e Isabella Rossellini, Blue velvet, 1986


Tinham passado doze Outonos pela menina dos olhos de prata. Filha de pais, filha da súplica, prosperara muitos desgostos invernosos e sonhos de Primaveras utópicas. Ainda assim, continuava viva, e saltava de paraíso em paraíso. O resultado deste périplo, o quão terrivelmente poético, é o desgaste da alma até à sua perda irreversível. Desconsiderando tal facto, continuava a saltar de pedra em pedra, na aprazibilidade, primeiro um pé, depois o outro.
A menina dos olhos de prata sustentava um pequeno corpo débil, coberto por longos cabelos de ébano que a protegiam do frio, a cerejas pretas e bagas silvestres, e, ainda assim, temia ser peso supérfluo para dissolver uma dessas pedras e cair no vazio ocultado debaixo delas.
Um dia, a menina dos olhos de prata colocou diligentemente o seu pequeno pé esquerdo sobre uma das pedras lunares de um desses paraísos amiudados, e nesse semi-maravilhoso local deparou-se com o homem dos olhos de ónix que brincava com o abismo, enquanto balançava numa das pedras.
Por ele tinham passado o dobro dos Outonos. Também ele filho de pais, também ele filho da súplica, de antiguidades habituadas. O homem dos olhos de ónix havia tido o mesmo costume da menina dos olhos de prata: em tempos ancestrais havia percorrido todos e quaisquer paraísos deste e daquele lugar, até se aperceber que por eles tinha passado repetidamente, até descobrir que nestes havia perdido um ínfimo pedaço de alma até à total dissipação.
Os olhos de prata da menina prenderam-se nos olhos de ónix do homem, imediatamente depois de se derreterem e formarem cada linha do seu rosto e cada fragmento corpóreo e incorpóreo do seu ser. Grande, mas modesto. Grosseiro, mas belo. Foi o que pensou a menina dos olhos de prata, e mais não pensou, manteve-se impávida, um pé sobre a pedra da entrada.
O homem dos olhos de ónix arraigou-se na fragilidade do ser que se apresentava com um pé na entrada, à pedra pousado, o outro na maldade anterior de todos os mundos. Nunca te vi aqui, disse o homem. Nunca estive aqui, respondeu a menina, Não passei por este inferno... Contestou-lhe o costume, Este hábito privar-te-á da tua alma, sabes? Porque teimas em fazê-lo? Estou consciente desse fenómeno, mas aceito que é a minha punição de tanto encanto encher a alma, ao passo que, da mesma forma, dela me privo. A menina dos olhos de prata maravilhou-o com a afirmação. Contudo, o homem dos olhos de ónix achou detestável a submissão da pequena menina a tão ignóbil perda, Podes ficar comigo e brincar com o abismo, queres? Ele também brinca connosco. É o que eu faço todos os dias, acho. Julgo que este lugar é maravilhoso, se eu pudesse apreciar a sua beleza, disse, sem sorrir. O homem dos olhos de ónix achava que tinha perdido a alma no dia em que decidiu desistir de saltar os mundos e viver naquelas pedras flutuantes, porque perdeu a capacidade de apreciar as circunstâncias circundantes. Mas um sentimento morno afligia-lhe agora o peito ao sentir a presença da menina dos olhos de prata. E quando olhou para o abismo no sentido de afastar esse sentimento, o abismo pareceu-lhe um terrível inimigo. Não quero ficar aqui, disse a menina, enquanto o pé que estava pousado na malvadez anterior saltava para a pedra seguinte, Aqui não há cerejas pretas. Mas há no interior, retorquiu o homem, Mas eu gosto de passear na margem, justificou a menina. Então eu vou buscar cerejas negras ao interior e tu ficas aqui a brincar comigo só por uns momentos. Pode ser? Sugeriu. A menina dos olhos de prata concordou, Mas só por um bocado.
O homem dos olhos de ónix nunca tinha ido ao interior, nunca tinha colhido cerejas pretas, nunca tinha comido cerejas pretas, nunca tinha tido companhia para balançar naquelas pedras. Ficaram naquele espaço a apreciar a companhia. Até que a menina avisou que estava quase na altura de ir, começava a aborrecer-se. O homem reparou então que a ideia de continuar naquele lugar sem a menina estava a invadir-lhe o pensamento, e o desespero começou a conquistar o corpo, desde o interior dos ossos até à pele, que, apesar de robusto, trepidou.
A menina dos olhos de prata avançou para a pedra onde o homem pousava sentado. Este levantou-se rapidamente e ela saltou para a mesma pedra. Vem comigo, pediu a menina. A pedra começou a ceder com o peso de ambos, antes que ele pudesse responder. O homem olhou assustado para os olhos de prata da menina e ela olhou para os olhos de ónix do homem por um tempo que pareceu eterno. A pedra estava a ceder. O homem dos olhos de ónix beijou apaixonadamente os olhos de prata da menina e saltou para a preservar da inevitável queda. Deixou a menina a balançar na pedra que, em lágrimas prateadas, saltou atrás dele ao encontro do abismo.
Restou uma pedra. Várias pedras e cerejas pretas. Num paraíso intoxicado.

Valquíria

Saturday 9 May 2009

ESQUELETOS





Uma quimera refugiada
Nos lábios daquela pessoa
Que te enterra na ignorância
E espera acomodar-te
No desespero desorientado.
É particularmente curiosa
A alotriofagia do coração humano.
Pegadas de leveza morta,
Como um cigarro pulmonar te envenena
O pobre sangue.
Vestes vestidos verdes, arco-íris,
Brancos, beijos de Judas.
Regozijastes penas mútuas, indecentemente.

Vês?
Consegues saborear o que a sábia repreensão
Benévola dos insectos putrefaz?
O Homem é sábio, capaz de raciocínio abstracto,
Deve-o à devoração
Daquilo que o devora no fim,
Depois de nascermos virados para o outro lado
Das partes.

Valquíria





Fotogramas do filme La chute de la maison Usher, Jean Epstein, 1928 (conto original de Edgar Allan Poe, adaptação de Luis Buñuel)


post publicado n'O Bar do Ossian