Friday 26 September 2008

A PÊRA VERMELHA (ou a concepção da loucura)


Encostada ao frigorífico, ao sabor ácido/amargo amanteigado, desfizeram-se conscientes tubérculos na minha língua bifurcada de amontoados desgostos. A memória inflecte a pantera ruiva no telhado que projecta o pôr-do-sol, dedos da irmã enrugados fecham caixas de plástico no meu cérebro, animal metamorfoseando-se na caixa de mágicos horrores, a mulher de branco aos pés da cama não se casa, derrete a morte. O ventre, então à porta do cubo gelado, posiciona na mão, qual estátua estática esfíngica, arrogantemente, uma leve pêra de encarnado sanguíneo, como se fosse comum. E eu grito gritos internos, abafados no abismo da loucura enquanto dedilho a pele do pescoço indiferentemente enrugada como velhos razoáveis.

Infortúnios infantis. Corro mais de uma dezena de degraus ao encontro de alguém real que me escreva na testa a verdade, enquanto toco mais uma vez o pescoço da loucura. Depois, ao som da lua, entro na montanha russa, e antes de estreitar o onírico, vou detestando aquele mosaico axadrezado de negro, amarelo e vermelho. Este choca-se com a minha visão interna, e aí encontra o cubo que me sobrepõe o encéfalo. Milhares de milhões de imagens da velocidade em persona, indigesta, indistinguíveis como patologias nas vozes da ignorância, surgem. E tudo é estranho num jardim de flores imaginárias cujas cores se adjectivam.

Quando foi o tempo em que comeste arroz de tomate com salsichas e defecaste a moeda de cinquenta centavos? O mesmo tempo em que confundiste a realidade alucinada dos sonhos verídicos, criança.

Valquíria

Thursday 25 September 2008



Pêra vermelha com fígado e batatas cozidas, Valquíria, 2004

QUERO!


Tu que me deixaste a alma profanada de nada,
És tudo o que me falta, és o ar.
Por ti anseio viver sem a vil censura ensanguentada!
Sonhar sem ter que acordar.
Morrer num sonho eterno.
Não quero a letargia deste infortunado viver efémero!
O vazio que não me incomoda, é o que resta deste eu fétido.
Incomoda-me estar vazia de ti, não vazia do teu amor prefabricado.
Somos espíritos transportados pelo vento sobre um campo tétrico
E no sabor da minha cor translúcida, na textura do teu som aveludado.
Tudo o que tínhamos era do nada que teremos.

Quero saber o que te fiz,
Quero abrir o teu peito com garras vis
De mãos dedilhadas de discórdia e olho-de-perdiz,
Subtrair-te o sangue, o teu coração,
Fazer dele um bocado da tua mente demente de paixão.
Quero a tua alma e o teu chão.
Quero a coragem que em ti perdi.
Quero que, lentamente, me apagues em ti,
Que te apagues em mim.
E quero desaparecer, tornar-me irracional,
Voar na permanência de um vento outonal.
Quero dormir e sonhar, para sempre viver em inconscientes!
Roubar os teus sonhos para sentir o que sentes!


Valquíria

Monday 22 September 2008

E VOLTANDO A FALAR NA SABEDORIA


É esta uma alucinação provocada pelo ácido da vida. Um cérebro enxaguado, lavado e centrifugado, picado, feito em pedaços, em sementes plantadas ao lado de batatas carnívoras cozidas, esmagadas, aleitadas e a realidade é um empadão.
Que querem senão alimentarem-se da frivolidade e suarem o que de vós humanos faz num qualquer ginásio que cheira a perda?
És lindo, és decrépito, velho asqueroso! Gelado derretido, chupa-chupa caralhos... Bebes o esperma ou tem muitas calorias? Puxa cada pêlo, electrocuta-te, corta-te, queima-te, abre-te, tira, abre-te, põe, pinta-te, injecta-te, ou pede a alguém que o faça por ti com grandes doses de anestesia. Para que te sintas, que te odeies. Dá uma foda e deita fora. “Foi tão mau para ti como foi para mim? Não tenho livro de instruções.” Diz ela, despenteadas as palavras, infinitas, diminutas. “Por favor, alguém me queira sem me usar!”
Com este hálito de longevidade alcoolizada, agora, para entristecer a verdade.
Insónias, vícios menos benzos mais álcool, um estrondo de um peso morto no chão. “Não me mexi, foi todo o resto.”
De repente, foi como se um aspirador desproporcional sugasse tudo o que me rodeia. A estupidez é a infância da letargia? Gostavas de me ver nua, louco? Tenho bengalas que me sustentam a carne flácida, gelatina ilusória, dali.
Produz, consome e defeca. Tem um enterro na merda que produzes. Precisamos de outras razões para vos odiar?

Valquíria

Thursday 18 September 2008

SOCI SACIEDADE


Corpos confundidos numa massa de carne e pasta plasmática, emanam vapores de arrogância bucólica, entorpecida. Gritam, asmáticos, orgasmos psicológicos niilistas. Horrores de um terrível nojo gutural provindo de sarjetas entupidas de vísceras decompostas na estrada da existência. Estamos todos aqui ou numa rodopiante estagnação? A afogarmo-nos no eterno rio de tristeza e de merda e, ainda assim, sorrimos o sorriso ciente de que não é inconsciente. O último branqueamento que cobre de ouro, prata a podridão! Um asilo confortável onde escondemos o que somos, e mostramos um gémeo robótico, o cúmulo da sofisticação. Chama-se doce! Usa chaves em portas que não abre... Fornicador! Está orgulhoso por não fazer parte da perversão elástica generalizada. Exibindo rugas permanentemente plastificadas de silicone e petróleo… E sangue.

Valquíria

LAURA I


Observando paredes de Carmesim. Envolta num cheiro a cigarros apagados, e com substancial ingestão de um arco-íris a preto e branco de narcóticos, dispo o minúsculo tecido preto expansível que tão escassamente cobre as partes essenciais. O rubor das minhas carnes transpira num género equivalente. O som grave de cordas esticadas como forcas, que percorre o mesmo caminho da monotonia infinitas vezes, grita sexo violento. Indicação real da socialização neste cubículo. Sob a mesa, uma língua desconhecida entre as minhas pernas. Obrigas-me a fazer-te penetrares o teu membro cortante, horrível, delicioso e assustador na minha indolente fibra mucosa.

Valquíria

Wednesday 10 September 2008

CARTA IMAGINADA


Caro Fernando,

Decidi escrever-te, mas que te dizer? Para talvez falar-te de um sonho que tive em sono leve e tardio… Sonhei que caminhava, por ruas que eu e tu tão bem conhecemos, num estado alterado. Outras pessoas, que já não o eram, também por lá caminhavam. Estas criaturas, digo-te, eram agora estátuas de cera! Nas suas caras, assustadoramente inexpressivas, faltava-lhes a boca, e pedras cinzentas estavam no lugar dos olhos.
Que fiz eu perante tal cenário? Fugi. Fugi porque temi. Estava calor e supus que em breve estas estátuas começassem a derreter. E então meti-me em becos estreitos, fugi! Busquei lugares onde já não se pudesse ver o horror daquele cenário, e temi. Sim, tive medo. Medo de mim próprio. Estava agora sozinho, mas continuei a fugir ao encontro da solidão como se esta fosse inevitável. Decidi falar-te deste sonho porque em quase nada se distingue da minha realidade.
Estimo as melhoras, meu caro.

Álvaro de Campos

(carta imaginada, de Álvaro de Campos a Fernando Pessoa, numa aula de português da noite de 28 de Novembro de 2006)

Valquíria

Saturday 6 September 2008

DE MIM E DE TI


Recortes de palavras dos meus livros predilectos. Colados em saliva pastosa que escorre, lentamente, entre vales carnudos de sangue, sobre terreno liso como seda, branca de pureza sem fim. E, no interior dos teus olhos, salgada água que, sem querer, escapa explodindo o teu sensível ser. Podias deixar de me amar e de queimar tudo o que te é querido para me lançares sinais de fumo que constantemente ignoro. Leste em tempos livros predilectos em mim que te feriram e que te amaram. Tens agora de mim leves recordações que pensas amar, memórias de inexistentes momentos, de sonhos que confundes com uma realidade, de uma utopia tão irreal quão afiadas são as lâminas que me cortam.

Abruptamente escrevo sobre ti com palavras ultra-violentas, violento-te. Tento sentir esse poder de, violentamente, invadir um corpo com força inumana, presente apenas na animalesca força do masculu. Tenho vontade de o canibalizar para nele me tornar, num filho da violência, intermitência.

(Uma conjuntura óssea, desmaterializa-se pelo fogo, num crematório pessoal. A inferiorização intelectual, o espectro anal, carnal, bifurcal.)

Valquíria

ANIVERSÁRIO DA AMIZADE QUE MORREU


Collants apertadas na cabeça dos dedos da mão do coração. A partilha, que terminou há milénios atrás, detestável partilha revelou-se agora finada. Revelei-te, entre mares de lágrimas, a minha perdição. No limbo dançámos tangos tangíveis lânguidos de preferências abismais. Partilhas o meu sangue, detestei-te e agora quero apenas apagar-te.

Valquíria

Thursday 4 September 2008

PANEGIAR A MORTE


Sem gota de sangue, sem calor
Trespassas-me o corpo com flor
Negra, entristecida,
Qual morte rendida?

Tecida a teia da minha vida, os tentáculos
Que, friamente, me apalpam a carne intragável,
Escoriam-ma! Essas unhas amedrontam-me os espectáculos
Numa moldura ilegível e inimaginável.
Com a morte da vida engano a morte...
Sinto sangue correr-me o corpo, rios insinuantes
E cada curva dos meus órgãos, o corte
De vísceras malditas, alucinantes
Que, falsamente, sustentam a minha sorte.

Valquíria