Wednesday 10 September 2008

CARTA IMAGINADA


Caro Fernando,

Decidi escrever-te, mas que te dizer? Para talvez falar-te de um sonho que tive em sono leve e tardio… Sonhei que caminhava, por ruas que eu e tu tão bem conhecemos, num estado alterado. Outras pessoas, que já não o eram, também por lá caminhavam. Estas criaturas, digo-te, eram agora estátuas de cera! Nas suas caras, assustadoramente inexpressivas, faltava-lhes a boca, e pedras cinzentas estavam no lugar dos olhos.
Que fiz eu perante tal cenário? Fugi. Fugi porque temi. Estava calor e supus que em breve estas estátuas começassem a derreter. E então meti-me em becos estreitos, fugi! Busquei lugares onde já não se pudesse ver o horror daquele cenário, e temi. Sim, tive medo. Medo de mim próprio. Estava agora sozinho, mas continuei a fugir ao encontro da solidão como se esta fosse inevitável. Decidi falar-te deste sonho porque em quase nada se distingue da minha realidade.
Estimo as melhoras, meu caro.

Álvaro de Campos

(carta imaginada, de Álvaro de Campos a Fernando Pessoa, numa aula de português da noite de 28 de Novembro de 2006)

Valquíria

1 comment:

  1. A metamorfose dos sentidos é a lucidez das pétalas...pintam o imaginável no lugar do recanto do labirinto, abrindo espaço à tela

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