Saturday 27 December 2008

CIRCUNLÓQUIOS DE MORTE




A lua luz negra nua no céu coberto de lamúrias. A fraca luminosidade de pobres candeeiros produz imagens indistinguíveis nos chãos de espelho das desesperadas ruas e becos húmidos, onde paulatinamente um homem de cartola passeia o corpo lento. Destina-se uma vítima plausível. Modus operandi. Ferve-lhe a toxicidade do absíntio no estômago e nos nervos cerebrais ópticos que optimizam a visão nocturna. O homem julga-se um ser que não existe, provido de poderes indistinguíveis! A procura é inebriante. Enquanto caminha, a base das botas produz sons na calçada morta. Calca minúsculas pedras, desfazem-se em pó pelos pesados passos. A minha excitantemente detestável imagem feminina cruza-se no seu caminho, finalmente!
Vejo-o. E ele é realmente uma criatura abismal! É tudo aquilo que imagina ser em oportunas alucinações! Um monstro horroroso com face de porcelana e língua afiada. Mesmo de costas vejo-o aproximar-se de mim, o pavoroso cheiro a essência de ópio! Aproxima-se. Cheira-me os fios de cabelo asa de corvo perfumados de vida, entrelaça-os aos dedos, e eu paraliso. O seu longo braço cerca-me, sufoca-me com um lenço de éter rendilhado e eu perco os sentidos. O meu corpo é transportado como uma carcaça de um animal esfolado para um qualquer covil nefasto.
Portas surdas. Após uma interminável espera que retomasse os sentidos, o homem da cartola realiza por fim que estou morta! Ao analisar com o dedo a minha jugular, sente a escassez de pulsação. O sangue que não jorrou após desferir o corte. Saiu espesso, lento... Foi inesperado! A expectação da fusão entre a lâmina e a minha carne, agora em estado de rigor mortis, resultou numa desilusão. A impossibilidade de ouvir um último suspiro, de cheirar a carne fresca e o sangue límpido.
Num estado muito avançado de cortesia, o homem da cartola fez deslizar a desiludida mão enluvada sobre o espesso sangue vertido na mesa metálica, suposto panorama da minha morte. Quando chegado o suco à pele, já frio, vibrou um arrepio de comoção.
O homem descalçou as luvas lentamente, dedo a dedo. Retirou a cartola protestante de suor. Destapou-se da capa preta que o cobria. Delicadamente, desfez o lenço envolto ao fino pescoço, despiu a camisa negra e repousou a mão extraordinariamente quente no centro da minha barriga. Fê-la caminhar, lisa e tenaz, até ao meu pescoço, agarrando-o, e aguardou. Depois deslizou novamente até ao meu ventre, até às minhas pernas e afastou-as. Num processo sobejamente rápido, o homem destituído das vestes e em êxtase, numa atitude de um desespero necrófilo, deita-se sobre o meu corpo ao mesmo tempo que nele principia uma feroz violação. O homem pensa ouvir um gemido sair-me da boca, mas rápido deduz tratar-se de um suspiro post mortem, de algum ar reservado e agora expulso, provocado pelos movimentos bruscos. Neste pavor luxuriante e enquanto me puxa os cabelos, olha-me os olhos profundamente vidrados e inanimados, e a imagem excita ainda mais a sua emoção. Desesperadamente inundado na excitação, não percebe o movimento dos meus membros. Levanto as pernas secas e com as coxas aperto ferozmente as ancas do profanador, enquanto os meus braços envolvem o pescoço dele que, como acto irreflectido, tenta desprender-se, sem sucesso. Mas a força que inflijo é atroz e desmedida. De olhar desprovido de vida e qualquer expressão, pressiono com os cotovelos o fino e frágil pescoço do delicado homem. Ele grita um grito medonho num misto de excitação, dor e horror, enquanto contempla um leve sorriso mortiço na minha boca crua que o olha. Até não existir qualquer som proveniente da garganta do homem da cartola, até deixar de existir ar para expirar dos seus pulmões. O frágil pescoço quebra entre os meus braços, e ambos, mortos amolecemos lívidos, num fluído soporífico.

Valquíria




Fotogramas do filme Phantasmagoria: The Visions of Lewis Carroll, Marilyn Manson, 2010


Post publicado n'O Bar do Ossian

Monday 22 December 2008

OTROP ED ECILÀC MU E ANERGNAG|GANGRENA E UM CÁLICE DE PORTO



Black veil with circular frame, Susan Fenton, 2000


As nuvens passam nas cortinas e nas rasgadas unhas que chovem. Repugnam-te aquelas noites em que o desespero sangrava de uma ferida aberta? Parece-me que sim. E a altruísta vontade de felinos escondidos atrás do sofá verde. Arranham a bota no interior da parede.
“Tu e ela”.
Recortávamos cartolinas verdes e nelas colávamos brilhos que roubávamos de desconhecidos impacientes. Mas assim que o papel pobre reagia à humidade, os nossos olhos aprendiam brilhantes insanidades. E das palavras histéricas e acentuadas, sem embrulhos nem laços, rebuçados debruçados, mas como murros nos nossos estômagos, regurgitadas da estupidez castiçal da nossa madre.

Três leves corpos entristecidos partilham um pêssego estagnado de onde surge um animal que o devora. Desde sempre soubemos não querermos chegar a ser como aqueles que se recriaram em necessidades perante os nossos olhos. Lembras-te? Porque eu não me lembro de te ter dito, mas sei que sabíamos. Éramos pequenos génios abandonados. Pequenos génios necromantes, vazios de interjeições. E éramos gatos que subiam a telhados onde guardávamos segredos, aproximávamos gafanhotos às pestanas onde balançavam. Subíamos, descíamos e fugíamos daquelas escadas infindas que agora moram no meu onírico. Madeira velha, madeira bichada. Quando é que elas me vão deixar?
Agora tu perdeste nas tuas gavetas memórias que finges esquecidas. Seleccionaste a agradabilidade da tua infância e restou um resto de nada. E eu sirvo de caixa servente das tuas gavetas memórias que no meu interior colocaste, empilhadas, inadequadas. O teu processo defensivo levou-te à sanidade em que insistes viver com chocolates e agora somos o oposto que sempre fomos. Mas antes partilhávamos a mesma terra entre os dedos dos pés. Isso é possivelmente felicidade?

Valquíria

Dedicado à minha irmã

Wednesday 17 December 2008

WE CAN BE HEROES...


Christiane F. - Wir Kinder vom Bahnhof Zoo, Uli Edel, 1981

Sunday 14 December 2008


isn't love dubious?


Dita II, watercolour painting by Marilyn Manson

Here's some FUCK scene...

Thursday 11 December 2008

PATER NOSTER



Medieval (autor desconhecido)

Não existe um templo, existem ruínas, por trás de exuberantes fachadas, de lado da perspectiva banal. Da parte de dentro das paredes, percevejos em estruturais madeiras de podres ares, excêntricos percevejos mordomos. E em pedras nobres e gastas, que águas repousam? Nos históricos moimentos consagrados respira-se o peso das mágoas, angústias descarregam os seus horrores nas costas das estruturas exaustas, que, gastas, murmuram em ecos tortuosas almas.

- In nomine Patris...

Recalcam-se, retraem-se, reclamam-se apetites sob ameaçadores ídolos de matéria ordinária. E veneram ósculos impiedosos que abandonam no piso gelado. Renunciam posses que pensam inutilidades irrefutáveis, oferendas a ninguém onde se desintegram, onde se depauperam. Oblatos decrépitos! Fustigam assexos famintos, secam farsantes na pele nua da parte interna das vestes. E murmuram as falas sujeitadas.

- Et Filii...

Palco de sobranceria filantrópica, prostram-se análogos abomináveis. E curvados os corpos monótonos balançam sobre longitudinais bancadas de gelo que queima, enquanto lambem e ferem os dedos que apontam a ponta da página sacra. Silencioso o agudo grito grave que sai de fora para dentro à força da fraqueza, incongruentes dedos espalmam sem moldar minúsculas esferas sacramentadas. Finalmente desfazem em saliva grossa de totalidades o corpo circularmente oneroso de branco. Já brandam, desfeitos por dentro.

- Et Spiritus Sancti!

Valquíria


Post previamente publicado n'O Bar do Ossian

Saturday 6 December 2008


Dedicado à Antígona


Dancer in the Dark, Lars Von Trier, 2000


"They say is the last song, they don't know us, you see? It's only the last song if we let it be."

Friday 5 December 2008

LIBIDINOSO PRECÍPITE



Sem título, para o livro Sex de Madonna, fotografia Steven Meisel, direcção artística Fabien Baron


Numa cama de fétidos processos coloridos,
Na proporção de um espaço elevatório,
Existentes devaneios amorosos suprimidos
Como um todo, de uma massa de corpos no crematório.
Esconde o seu falo,
Fá-lo atrás de uma guitarra.
Gritara!
Um desejo doloroso de dor iminente
E, nu, sente
As frias bicudas carnes de estanho
Fustigadas pelas mãos de um estranho!

Valquíria


Tuesday 25 November 2008

SÁTIRA



Fotograma do filme Satyricon, Federico Fellini, 1969


A picotar as estranhas entranhas, animais vasculham alcatrões do interior do nosso caminho. Os animais sobejam vontade de gritar às putas mudamente. Despojam inquietudes de prostitutas palavras, lavadas no esgoto.
Humanidade! Daquilo que os nus se vestem.
Passamos em frios, pautados espaços que são o interior daqueles que nele existem e vivem em relevos, absortos, sobrevivem abortos. E na intensidade dos cheiros, doce-amarga o ácido nas tuas veias. Vertem verdes descalços, pisam vidros e, insensíveis, continuam a caminhar. Derretem mãos em mamas nádegas, desfeitas em dinheiro.
Defeitos! Daquilo que os nus se vestem.
E as eloquentes palavras vestidas de desdentadas bocas e, ainda assim, vampíricas. Querem, usam, de objectos não passam, de plástico velho, corroído, quebrado. Caro, demasiado desvalorizado. E assim subestimam o inferno que pisam.
Loucura! Daquilo que os nus se vestem.
E contam níquel nas palmas sujas, desgostos pequenos, afogam-se em misérias de trapos pestilentos e lascivos. Rosa-lhe o choque de lábios moles, cabelo de palha dourada, cascos limados de céu. Divergem os passos em tortas pernas cravadas de veias.
Cadência! Daquilo que os nus se vestem.
Comovidamente, habitam ruas de um lado ao outro, no fim e no começo, e em linhas ténues de infelicidade pelos filhos, póstumos de droga, que assombram oceânicos subconscientes. Quando facas contornam, corpos escapam à vida. Ou as mãos ensanguentadas de assassinatos. Voam vírus por canais invisíveis e clamam picotar desesperadamente a carne.
Mortalidade! Daquilo que os nus se vestem.

Valquíria


Post previamente publicado n'O Bar do Ossian

Sunday 23 November 2008

O anjo ri-se enquanto três litros de sangue fogem do meu corpo, cada vez mais lânguido.
Corpo perdido numa qualquer linha de ferro subterrânea.



Teia-de-pânico: uma causa comum!



Aparece vindo do escuro, d'uma infância de subterfúgios.
Refúgios.



Sublinha-me as pálpebras dos olhos com a
ponta
da
afiada
faca.


Eyelined, A. W., 2006


Sublima-me, arma mortal nos meus cabelos de hera... Era uma vez as vísceras de Jesus e Maria Madalena afogando-se no seu sangue,
sangue
sangue
sangue

VEM-TE!
Uma,
duas,
três vezes puta!
Filantrópico o coração relativamente aos outros órgãos!

Valquíria

Tuesday 4 November 2008

VOLUPTUOSU



Fotograma de Twin Peaks, David Lynch & Mark Frost, 1990


No surrealismo do teu interior,
magnífico e aterrador,
lambe a minha cripta gelada
até que ela se encontre, fustigada,
suada, mastigada...

Num espectáculo fúnebre
somos actores e plateia inúmera,
a minha vagina burlesca e lúgubre
morbidamente enterra-nos na penumbra.

E então, neste sepulcro angustiante
sente-se o frio odor do nojo
a repugnância, o asco e o luto incessante
colam-se às paredes como despojo!

Valquíria


Fotograma de Twin Peaks, David Lynch & Mark Frost, 1990

Friday 31 October 2008

HUMILHAÇÃO



In Voluptate Mors, Salvador Dalí & Philippe Halsman, 1951


Um carro fúnebre atravessa o cemitério labiríntico da nação anulada. Linha morta fátua, inebria o círculo flamejante dos Olhos da finada. E o carro caminha lentamente, perdido, sine praetensu de se aproximar da última cova. Sem se detectar um único movimento, o corpo sem vida revolta-se em fotogramas polípticos de ansiedade e desespero pelo inesperado repouso final. Sentados em veludo púrpura, os vivos que o acompanham desprezam a presença enclausurada no féretro, festejam bebidas em cristais partidos, casacos de pêlo, tecidos leves, livros de histórias de papel, concebem cenários impudicos em relevo, mamilos que espreitam as línguas que choram numa Ode orgíaca aos amados finados.
Cabeças decepadas transvestidas repousam em frascos de vidro convergente repleto de líquido conservante florescente, auto transformam o espaço, humedecido, onde as criaturas vivas se envolvem na orgia. Maquilhagem que se despega como pele da carne, despega-se como tinta velha em pestanas postiças de metal, que, podres, acompanham as feições deformadas. E ali ficou, na eterna expressão da morte, a acompanhar a gula canibal de ninguém. Ao passo que a mortalha do morto mortiço, escarlate escudado esverdeado, aniquila-se nas cinzas.

Valquíria


Post previamente publicado n'O Bar do Ossian

Monday 27 October 2008

OS NOSSOS FINADOS



Caveira da Capela, Valquíria, 2008


Detesto escrever sobre ossos que encurtam a distância da morte. Três passos dão entre o nascimento da adoração e o frio flácido falecimento, onde na fálica ostentação em ruínas nos diminuímos, célere crescemos nas penumbras cálcicas e trémulas.
Onde uma criança e um pai, talvez, se adoram até na morte que os acompanha difícil e desesperadamente na eternidade que um dia acabou. Depois escrevemos compulsiva e freneticamente sobre os corpos secos de carne, aos quais, crentes, antepassados fanáticos rezaram, vegetativos, a ténue vida, com pena de esta findar, sobejando a doce inveja da imortalidade do terrível ícone que, em forma de objecto, dança estático no centro. Porque vincarmos o absurdo torna mais aceitável a realidade.

“Nós ossos que aqui estamos, pelos vossos esperamos.”

Valquíria


Post previamente publicado n'O Bar do Ossian

Thursday 9 October 2008

VAMPIROS LENTOS


Fotograma do filme Nosferatu: Phantom der Nacht, 1979



Dentro de mim mesma, tacteio as paredes internas, infernos moles. Visto-me, calço-me, de humana, permitindo-me passear entre outros humanóides semelhantes, sob, dentro ou acima. Desassossego-me no vácuo vazio dos poços oculares de meus reflexos.

Vejo uma paisagem apocalíptica da janela onde, prostrada, reparo existirem outras de mim mesma noutras absolutamente distintas janelas onde semelhantes cortinas de cascatas de sangue coagulado esvoaçam. E na paisagem do apocalipse, vampiros secos abominam ressacas previsíveis de sangue. A lei seca de vinho, de álcool, de sangue. A lacuna de vivos quase petrifica estes seres penosamente sôfregos. Coitados! Secam em posições estáticas, cambaleantes. As cartolas, ruínas onde o vento se molda ao som do pó. As unhas rachadas, entrelaçam-se em proeminentes laços de regaços falecidos. A palidez de um branco inexistente. E os dentes, que descem até aos queixos, brilham de brilhos tão atraentes que corvos completam este quadro abismal, como abutres de diamantes ou leves companheiros.

Das janelas, os meus egos variáveis vislumbram, e as espantadas bocas abertas e oblíquas, em expressões únicas. Do interior delas, dedos caminham ao encontro do exterior, depois os braços, a cabeça seguindo-lhe todos os restos corporais, deslizam como num parto. E a minha roupa absurda de pele cai pesadamente no chão, num grito estridente, e tudo estremece. As janelas partem-se. Todos os egos se partem em pedaços e partículas de pó que são levadas pelo vendaval até às cartolas vampíricas, e cobrem a palidez da pele dos vampiros da palidez da minha pele. Detrás da janela estilhaçada, sobrevivo protegida pelos cortinados de sangue pegajoso. Enrugada, olho orgulhosos olhares que voam e fotografam os secos vampiros que dançam em cabides no Oeste apocalíptico, enquanto disparam estacas a partir de revolveres flácidos.

Valquíria

Saturday 4 October 2008


Eu doou. A minha pele líquida e viscosa... A minha carne, putrefacta, cai, seguindo o movimento de uma terra que a engole vorazmente, transforma-me em alimento... E aí me jazo, debaixo de uma campa de xisto que me penetra o crânio. Os meus pensamentos surgem em epitáfio, ninguém os lê, engolidos nos seus próprios egos.

Valquíria

Dancing Skeletons, Edward Burra, 1934

Ritual sanguinário: desmembra-se um corpo e logo se lhe restituem ao tronco solitário como que com medo da decomposição precoce. Tentativa frustrada - a amputação é um estado permanente - e, então, usam-se agrafos para a união, mas a pele nem se chega a tocar e a decomposição avança como se gritasse "TODO ESTE TRABALHO FOI EM VÃO!" de frustração... mas os membros assim ficam, formando um corpo agora falso de extremidades oxidáveis, membros que agora pingam, mortos, de um tronco, morto. A morte é para sempre, um estado permanente que não se agrafa com ferros ferrugentos.

Valquíria

Friday 26 September 2008

A PÊRA VERMELHA (ou a concepção da loucura)


Encostada ao frigorífico, ao sabor ácido/amargo amanteigado, desfizeram-se conscientes tubérculos na minha língua bifurcada de amontoados desgostos. A memória inflecte a pantera ruiva no telhado que projecta o pôr-do-sol, dedos da irmã enrugados fecham caixas de plástico no meu cérebro, animal metamorfoseando-se na caixa de mágicos horrores, a mulher de branco aos pés da cama não se casa, derrete a morte. O ventre, então à porta do cubo gelado, posiciona na mão, qual estátua estática esfíngica, arrogantemente, uma leve pêra de encarnado sanguíneo, como se fosse comum. E eu grito gritos internos, abafados no abismo da loucura enquanto dedilho a pele do pescoço indiferentemente enrugada como velhos razoáveis.

Infortúnios infantis. Corro mais de uma dezena de degraus ao encontro de alguém real que me escreva na testa a verdade, enquanto toco mais uma vez o pescoço da loucura. Depois, ao som da lua, entro na montanha russa, e antes de estreitar o onírico, vou detestando aquele mosaico axadrezado de negro, amarelo e vermelho. Este choca-se com a minha visão interna, e aí encontra o cubo que me sobrepõe o encéfalo. Milhares de milhões de imagens da velocidade em persona, indigesta, indistinguíveis como patologias nas vozes da ignorância, surgem. E tudo é estranho num jardim de flores imaginárias cujas cores se adjectivam.

Quando foi o tempo em que comeste arroz de tomate com salsichas e defecaste a moeda de cinquenta centavos? O mesmo tempo em que confundiste a realidade alucinada dos sonhos verídicos, criança.

Valquíria

Thursday 25 September 2008



Pêra vermelha com fígado e batatas cozidas, Valquíria, 2004

QUERO!


Tu que me deixaste a alma profanada de nada,
És tudo o que me falta, és o ar.
Por ti anseio viver sem a vil censura ensanguentada!
Sonhar sem ter que acordar.
Morrer num sonho eterno.
Não quero a letargia deste infortunado viver efémero!
O vazio que não me incomoda, é o que resta deste eu fétido.
Incomoda-me estar vazia de ti, não vazia do teu amor prefabricado.
Somos espíritos transportados pelo vento sobre um campo tétrico
E no sabor da minha cor translúcida, na textura do teu som aveludado.
Tudo o que tínhamos era do nada que teremos.

Quero saber o que te fiz,
Quero abrir o teu peito com garras vis
De mãos dedilhadas de discórdia e olho-de-perdiz,
Subtrair-te o sangue, o teu coração,
Fazer dele um bocado da tua mente demente de paixão.
Quero a tua alma e o teu chão.
Quero a coragem que em ti perdi.
Quero que, lentamente, me apagues em ti,
Que te apagues em mim.
E quero desaparecer, tornar-me irracional,
Voar na permanência de um vento outonal.
Quero dormir e sonhar, para sempre viver em inconscientes!
Roubar os teus sonhos para sentir o que sentes!


Valquíria

Monday 22 September 2008

E VOLTANDO A FALAR NA SABEDORIA


É esta uma alucinação provocada pelo ácido da vida. Um cérebro enxaguado, lavado e centrifugado, picado, feito em pedaços, em sementes plantadas ao lado de batatas carnívoras cozidas, esmagadas, aleitadas e a realidade é um empadão.
Que querem senão alimentarem-se da frivolidade e suarem o que de vós humanos faz num qualquer ginásio que cheira a perda?
És lindo, és decrépito, velho asqueroso! Gelado derretido, chupa-chupa caralhos... Bebes o esperma ou tem muitas calorias? Puxa cada pêlo, electrocuta-te, corta-te, queima-te, abre-te, tira, abre-te, põe, pinta-te, injecta-te, ou pede a alguém que o faça por ti com grandes doses de anestesia. Para que te sintas, que te odeies. Dá uma foda e deita fora. “Foi tão mau para ti como foi para mim? Não tenho livro de instruções.” Diz ela, despenteadas as palavras, infinitas, diminutas. “Por favor, alguém me queira sem me usar!”
Com este hálito de longevidade alcoolizada, agora, para entristecer a verdade.
Insónias, vícios menos benzos mais álcool, um estrondo de um peso morto no chão. “Não me mexi, foi todo o resto.”
De repente, foi como se um aspirador desproporcional sugasse tudo o que me rodeia. A estupidez é a infância da letargia? Gostavas de me ver nua, louco? Tenho bengalas que me sustentam a carne flácida, gelatina ilusória, dali.
Produz, consome e defeca. Tem um enterro na merda que produzes. Precisamos de outras razões para vos odiar?

Valquíria

Thursday 18 September 2008

SOCI SACIEDADE


Corpos confundidos numa massa de carne e pasta plasmática, emanam vapores de arrogância bucólica, entorpecida. Gritam, asmáticos, orgasmos psicológicos niilistas. Horrores de um terrível nojo gutural provindo de sarjetas entupidas de vísceras decompostas na estrada da existência. Estamos todos aqui ou numa rodopiante estagnação? A afogarmo-nos no eterno rio de tristeza e de merda e, ainda assim, sorrimos o sorriso ciente de que não é inconsciente. O último branqueamento que cobre de ouro, prata a podridão! Um asilo confortável onde escondemos o que somos, e mostramos um gémeo robótico, o cúmulo da sofisticação. Chama-se doce! Usa chaves em portas que não abre... Fornicador! Está orgulhoso por não fazer parte da perversão elástica generalizada. Exibindo rugas permanentemente plastificadas de silicone e petróleo… E sangue.

Valquíria

LAURA I


Observando paredes de Carmesim. Envolta num cheiro a cigarros apagados, e com substancial ingestão de um arco-íris a preto e branco de narcóticos, dispo o minúsculo tecido preto expansível que tão escassamente cobre as partes essenciais. O rubor das minhas carnes transpira num género equivalente. O som grave de cordas esticadas como forcas, que percorre o mesmo caminho da monotonia infinitas vezes, grita sexo violento. Indicação real da socialização neste cubículo. Sob a mesa, uma língua desconhecida entre as minhas pernas. Obrigas-me a fazer-te penetrares o teu membro cortante, horrível, delicioso e assustador na minha indolente fibra mucosa.

Valquíria

Wednesday 10 September 2008

CARTA IMAGINADA


Caro Fernando,

Decidi escrever-te, mas que te dizer? Para talvez falar-te de um sonho que tive em sono leve e tardio… Sonhei que caminhava, por ruas que eu e tu tão bem conhecemos, num estado alterado. Outras pessoas, que já não o eram, também por lá caminhavam. Estas criaturas, digo-te, eram agora estátuas de cera! Nas suas caras, assustadoramente inexpressivas, faltava-lhes a boca, e pedras cinzentas estavam no lugar dos olhos.
Que fiz eu perante tal cenário? Fugi. Fugi porque temi. Estava calor e supus que em breve estas estátuas começassem a derreter. E então meti-me em becos estreitos, fugi! Busquei lugares onde já não se pudesse ver o horror daquele cenário, e temi. Sim, tive medo. Medo de mim próprio. Estava agora sozinho, mas continuei a fugir ao encontro da solidão como se esta fosse inevitável. Decidi falar-te deste sonho porque em quase nada se distingue da minha realidade.
Estimo as melhoras, meu caro.

Álvaro de Campos

(carta imaginada, de Álvaro de Campos a Fernando Pessoa, numa aula de português da noite de 28 de Novembro de 2006)

Valquíria

Saturday 6 September 2008

DE MIM E DE TI


Recortes de palavras dos meus livros predilectos. Colados em saliva pastosa que escorre, lentamente, entre vales carnudos de sangue, sobre terreno liso como seda, branca de pureza sem fim. E, no interior dos teus olhos, salgada água que, sem querer, escapa explodindo o teu sensível ser. Podias deixar de me amar e de queimar tudo o que te é querido para me lançares sinais de fumo que constantemente ignoro. Leste em tempos livros predilectos em mim que te feriram e que te amaram. Tens agora de mim leves recordações que pensas amar, memórias de inexistentes momentos, de sonhos que confundes com uma realidade, de uma utopia tão irreal quão afiadas são as lâminas que me cortam.

Abruptamente escrevo sobre ti com palavras ultra-violentas, violento-te. Tento sentir esse poder de, violentamente, invadir um corpo com força inumana, presente apenas na animalesca força do masculu. Tenho vontade de o canibalizar para nele me tornar, num filho da violência, intermitência.

(Uma conjuntura óssea, desmaterializa-se pelo fogo, num crematório pessoal. A inferiorização intelectual, o espectro anal, carnal, bifurcal.)

Valquíria

ANIVERSÁRIO DA AMIZADE QUE MORREU


Collants apertadas na cabeça dos dedos da mão do coração. A partilha, que terminou há milénios atrás, detestável partilha revelou-se agora finada. Revelei-te, entre mares de lágrimas, a minha perdição. No limbo dançámos tangos tangíveis lânguidos de preferências abismais. Partilhas o meu sangue, detestei-te e agora quero apenas apagar-te.

Valquíria

Thursday 4 September 2008

PANEGIAR A MORTE


Sem gota de sangue, sem calor
Trespassas-me o corpo com flor
Negra, entristecida,
Qual morte rendida?

Tecida a teia da minha vida, os tentáculos
Que, friamente, me apalpam a carne intragável,
Escoriam-ma! Essas unhas amedrontam-me os espectáculos
Numa moldura ilegível e inimaginável.
Com a morte da vida engano a morte...
Sinto sangue correr-me o corpo, rios insinuantes
E cada curva dos meus órgãos, o corte
De vísceras malditas, alucinantes
Que, falsamente, sustentam a minha sorte.

Valquíria

Sunday 31 August 2008

BORDERLINE MONÓLOGOS


Sou a filha, a irmã, a amiga, a colega, a conhecida, a vizinha, a foda, a companhia, só por acaso. E quando sou Pessoa?! Nesta puta de vida não consigo ser nem Pessoa!
Eu, eu e eu. Ser narcisista, megalómano das emoções alheias, contribuinte de nada. A minha alma está febril: não é minha, não sou eu. Não és tu nem aquele que não vê. O Tomás da realidade ilusória, sem som nem imagem mesmo que ficcionados! Explosão de uma fibra capilar dourada... sou mero nada!

Valquíria

BONECA DE LIXO


Belladonna (oil on board), Lori Earley, 2004

Senti a minha face de porcelana abstracta ao tocá-la.
Sei que tenho algum poder, ainda que fútil.
Algum poder carnal?
Como o que uma mulher tem sobre um homem.
Como um ser humano tem sobre outro ser humano.
Sobre seres humanos, espécie ininteligível.

Poder canibal?
O meu poder degradar-se-á algum dia.
Autofagia?
Horas, minutos – tudo o que me falta?
Aquela parede pintada de simplesmente nada.
Túlipas pretas abundam o meu íris, e traços de lírios amarelos,
laivos tenebrosos em ébano morto.
Agora olham aquela face de porcelana abstracta reflectida, empalidecida.

Valquíria

SOLILÓQUIO A MEU TIO


Uma garrafa vazia e o brilho do cristal que flutua nos teus olhos secos, vidrados. A substância corre em todas as tuas veias e posso sentir-lhe o cheiro. É um aroma de apodrecimento como se já estivesses enterrado (e estás desde que invadiste pela primeira vez o teu corpo). Se te tocasse a tua pele tornar-se-ia a minha pele. Amarela, porquê? Se é algo que não tem cor, ou vida de qualquer espécie, portanto não é mortal nem imortal. Só existe porque também exististe e por sua causa deixaste de existir... Tu e o exército seguinte na milésima guerra mundial do inconsciente humano! Foda-se! Por que as folhas caem? Porque morreram. É simples e frágil a morte, e é também ela imortal como a memória que temos de tudo o que morreu... Mortalmente imortal. E está deveras insatisfeita, a pobre!

Valquíria

Monday 25 August 2008

O QUARTO (inacabado)


Protegida pela intercepção das palavras. Estranho fenómeno. Anomalia analógica canibalesca. Paredes fétidas e escorregadias não permitem a tua entrada na sala rectangular arredondada onde cogito e me vomito. Ai, se o sexo selvático da salvia me não alimentasse a estagnação, o quão seria eu feliz naquele infeliz cubículo de três pontas aguçadas. Aguça-me o ouvido, aguça-me o paladar.

Valquíria

Sunday 24 August 2008

O POEMA DO CADÁVER

Do covil observo a tua passagem
Caminhas sobre passos arrogantes,
Sublime leve aterragem.
A voz de tons agonizantes
Transporta das entranhas ar pútrido.
Cabelos e unhas intactos.
Nos olhos, vazios putrefactos.
Tantos anos a terra há-de ter comido!

Dentes grandes, brancos, aproximam-se
Sob luz negra que a lua cheia emana.
Garras afiadas entre meus cabelos.
No meu crânio cravam-se
Os dedos que estilhaçam os meus ossos de forma inumana.
O brilho do meu córtex, já visível,
Dá vida ao olhar vazio da criatura que vislumbro.
Entre os dentes, uma língua seca, horrível,
Beija o meu cérebro húmido que o brilho deslumbro.
De todo este erotismo, nasce uma fome imortal
Pela massa mole que de meu crânio é recheio!
Num ímpeto, começa o banquete devorativo, sem receio.
E do vazio silencioso nasce um gutural,
Mas é imperceptível a sua proveniência
Por ser agora apenas uma só criatura sem consciência!

Valquíria

PORNO AGRAFIA


As flores de hoje não são o que ontem foram. Hoje o negro apodera-se dos seus tecidos vivos antecipando a sua morte precoce. A putrefacção das células simples de um tecido com tantas cores e, substancialmente, aquoso. A putrefacção da água, tão-somente! Concepção feita através de pólen afrodisíaco. Fios negros, microscópicos, carregam preciosos círculos transparentemente coloridos de todos os tons do sol. Substância regurgitada numa espécie de líquido espesso, pegajoso. E línguas percorrem-no, lentamente, húmidas, pela epiderme pálida e lisa. Lábios que sugam leite espesso, e transparente âmbar de peles púbicas femininas através de línguas do mesmo sexo.

Valquíria

A VIOLÊNCIA DE MIM, DO QUE SINTO


Untitled, Bjärne Melgaard

Pautas acordam indesejáveis mortos da cova, que se movem repletos de terra do cemitério da minha mente. Vejo-os do outro lado do vapor esverdeado que denuncia as suas recentes mortes. Assassinei peças do meu passado. Agora, desesperada, qual criminosa, tento substituir o vazio insubstituível do puzzle da minha vida. É inútil! O vazio olha-me na sua permanência, e sangra, qual ferida aberta. É uma boca esfomeada, é um olho incriminador, é uma cova vazia. Insuportavelmente ensurdecedor o silêncio do que não existe, atribuo-lhe som roubado das pautas que agora ouço. Um ninho de arame farpado... Estou isolada em objecto disforme que possuo. Na realidade que quero acreditar não ser real. Pobres penas acabadas... Não quero deixar de ter pena de me amar. A confortabilidade do desespero e da imensa e infindável tristeza que me deixa absorta de tudo. A tristeza narcísica que alimenta a minha criatividade que me alimenta a tristeza...

Valquíria