Thursday 30 July 2009

O QUARTO (parte II)



Fotogramas do filme Possession, Andrzej Zulawski, 1981


Estou, atempadamente, na casa onde nasci, dissolvida num semi-amontoado de memórias. Assedio a minha entrada num protótipo de quarto que ilumina as escadas principais. Esta divisão não existe, só neste espaço. Nesta sala quadrangular monitorizada, as paredes são esconsas, os cantos biangulares – é como se oscilasse aleatoriamente no formato oblíquo. Dezenas de janelas mórficas na margem do tecto, – antes das paredes, depois dos monitores – permitem uma entrada substancial de luz no quarto onde estão penduradas telas aos tectos disformes. As telas estão imaculadamente pintadas, de um dadaísmo sem sentido, como se tivessem sido esborratadas por infantes psicóticos de mãos neuróticas e trémulas.
Num súbito romper do espaço, um corpo hirto, coberto de branco, um espectro afiado de ossos aquilinos, surge com uma bandeja prateada equilibrada sobre as unhas rectas dos dedos fátuos da mão esquerda, onde reserva aveludada carne crua, ensanguentada. Devoro o naco de carne com dentes de felino, precipitadamente. Entusiasmados salpicos de sangue ensopam as telas e a mácula roupa da figura esguia que não parece importar-se com a beleza escarlate do sangue, antes exibe um riso formal diante do casual festim visceral. Impetuosamente, desaparece na penumbra da janela quadriculada, exibido no monocromatismo do papel de parede apodrecido. Ao olhar na direcção oposta, outra criatura exibe-se na timidez do espaço fugaz e eu deixo cair a carne numa poça de sangue. Como é apetecível, demasiado estático, olhar vazio, opaco, cortante e morto. Sinto um apetite extremo de o consumir, como àquele bocado de carne crua agora a ser devorado pela poeira morta do chão.
[Fode-o!]
Numa previsão de milésimos de segundos, projecto os acontecimentos nos ecrãs monocromáticos: vejo-me despi-lo – dispo-o; vejo-o castrado – está castrado e coberto por uma espessa camada de borracha nuclear. Numa atitude escapatória, escarneço e sou embalada pelo riso que se transforma num excessivo e teátrico gutural, e, ainda assim, a criatura mantém-se vácua, trépida, dissolvendo-se numa pasta de carne imóvel.

Valquíria