Saturday 21 January 2012

FENDA

Persona, 1966, Ingmar Bergman

Indicaram uma saída pela janela da morte, num tempo passado. Ele saiu pela então saída da cavalariça, para não findar a vida. A voz perseverante dançava-lhe a cabeça, como se violasse o envoltório cerebral, modelando palavras que esboçavam o sentido da fenda na pedra.
Trepou, trepou a extrema verticalidade da mais vasta pedraria. Os dedos adaptados aos intervalos da calçada que, acima, pendia de arcadas romanas moles dum imperceptível romanesco alaranjado. De pó. De cal. E, depois de trepar tão funesta ingremidade, avança enquanto ignora o leproso pedinte.
Defronta, logo, monumento impetuoso! Rasgado no ângulo, nos cantos. Estende as mãos defronte do preceito da fenda, adornada de quadrados múltiplos, e é, imediatamente, invadido por poderes singulares. Das mãos, que examina, jorram luzes sem fim, luzes eruditas, capazes de curar as moléstias e a ignorância. O corpo, branco, paira no ar, edificado! E a voz, já cansada, reclama: «As mãos que curam, mesmo que dotadas da mais extensa sabedoria, deveriam ser santificadas!


23/6/2011

Valquíria

Tuesday 21 September 2010

MORTALHA CAPITAL



Ars Moriendi, Joel-Peter Witkin, 2007

No momento em que poderei ser terra, larvas, putrefacção, abstrair-me-ei da vida, sem saudades das linhas garridas de fontes inférteis, distante das ignomínias coléricas.

Pintadas de vultos as entidades automatizadas dançam na psicose da inteligência despovoada; são alcoólicos narcotizados! Ressaltam as linhas distorcidas dos seus rostos com maquilhagem grotesca, e ignoram a beleza aprazível da qual se alimentam as hostes selvagens. Esse exército de inimigos, fiéis conturbados, favorece ignobilíssimos apocalipses da gnose individual.

Riu-me, sarcástica.

Cumpliciaremos no violento homicídio selectivo da mente. Compareceremos, depois, na cerimónia fúnebre deste espectro, como calibrados idiotas masoquistas que, com dissimulada cobardia, se mascaram de véus secos de pranto. Cinicamente, no sucessivo tempo, limparemos as campas áridas com nossas lágrimas abjectas. Somos detestáveis seres, plantas carnívoras viciadas na autofagia.


Valquíria

Thursday 11 March 2010

RUÍNAS



Fotograma do filme Vargtimmen (AKA Hour of the Wolf), Ingmar Bergman, 1968


O que é esta ode programática?
Olho brilhantemente para o ofusco horizonte que me diz coisa alguma. O horizonte verde, cinzento de mar, esse mar absoluto que é ser, que é o muro gigante que me faz prisioneira. Olho. O sexo. A comida. Os livros intrínsecos. Cansada.
Apossa-se de mim uma vontade de vícios e de dores. O pó pastoso amargo, o fumo a escorrer-me da boca e o sangue dos braços às pontas dos dedos que brincam, rudimentares, nas pratas argoladas. Era a infelicidade que subtraía aquilo que não sou, e não mais poderei ser.

De repente, acordo, possuída de desdém por estranhos que me estranham e se atraem à minha carne. Coveiros nefastos! Doces de natal pegajosos. Chapelinhos repugnantes, nestes castelos ausentes.
Pairo na via pública e amo o meu reflexo no mar negro e nas casas nele plantadas, por ele engolidas. Casas náufragas da virtude, da estabilidade inorgânica. Vividas na ausência fria da chuva.


Valquíria

Saturday 13 February 2010

Wednesday 2 December 2009

[A]TEMPORAL



Narcissus 1
, Andrew Wodzianski, s/d


O tempo cíclico das coisas e as palavras infamemente abominadas oxidam em buracos breves de nada. As palavras amnésicas, as palavras frágeis, sustentam-se em nadas abrasivos. Palavras impecáveis as inexistentes: um caminho de polvo, de paredes invioláveis, onde monstruosos corvos dão início a reveladoras tarefas noctívagas - o revisionismo amnésico. Vicissitudes, tal como as falhas acrobáticas que laminam o osso doente do duende demente.

Litania salmodiada:
Taütira fode Taüra e Tuitéri, delas nasce Térütahia i Marana que fodeu Tétuaü e desta nasceu a amnésia.

Valquíria


Sunday 25 October 2009

JITTERBUG LINDY HOPPERS MADNESS

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David Lynch's Mulholland Drive, The 13th Floor, music - Jitterbug

Peter Loggins in M'Obscene Marilyn Manson's video

Friday 25 September 2009

FANTASMAS COM PELE


Decerto preconizamos a textura da nossa pele, depois de analisá-la exaustiva e cuidadosamente. Somos todos cautelosamente sociais, em resultado de uma programação cerebral meticulosa, natural e defensiva. Não é que queiramos, ou que alguém tenha tido vontade imensurável de deixar-nos deixar de ser humanos em prol da humanidade – mas deixámos de ser o que sempre fomos. Porque os nossos olhos foram abertos a uma realidade forjada enquanto nos adoçavam as papilas gustativas com electrochoques e na chamada glândula pineal (de alguma forma fálica até na morfologia da palavra), metaforicamente conjecturando. Literalmente, nascemos e fomos encaixando-nos, de certa forma desencaixados, ao formato pseudo compartimentado em pequenas peças de puzzle impossíveis.

VAZIO

O espaço é redondo até na forma da luz, por isso estamos no centro, onde quer que estejamos. Logo, o humano é egoísta em toda a sua humanidade. Alguém no centro é sempre mais do que alguém. E sem luz não existe, tal como o espaço.

Valquíria

Bauhaus, Bela Lugosi's Dead, 1979

Tuesday 8 September 2009

EYE, Visions Of Love & Death



Jim Morrison, 1943-1971


He sought exposure, and lived the horror of trying to assemble a myth before a billion dull dry ruthless eyes. Leaving his plane, he strode to the wire fence, against the advice of his agents, to touch hands. Standing close to appeal his invitation for admire him worship or weapons. The constant unspoken interior knowledge, that his body was target every public second. Charged murderous awareness of beasts. New nerves of sensation flowered on his neck spine garden. When he looked at you, they said, he stripped back your skull. Naturally. For well wishing admirer smiles easily hide death behind cat teeth. Not paranoia or beyond grave carelessness, but a fine sensuous knowledge of violence in an eternal present.

Cyclop
. People who resemble primitive lizards have a jewel within their skull. Called the pineal gland, it is located inside the brain at the juncture of the two hemispheres of cerebellum. In some this third vestigial eye is still sensitive to light.

The eye resists detached analysis. Realize that the eyes actually are two soft globes floating in bone.

The impressions are seeing me.

Ask anyone what sense he would preserve above all others. Most would say sight, forfeiting a million eyes in the body for two in the skull. Blind, we could live and possibly discover wisdom. Without touch, we could turn into hunks of wood.

The eye is a hungry mouth
That feed on the world.

Architect of image worlds

in competition with the real.

There are twin planets
in the skull.

The eye is god. And the world,
for it has its equator.

Pluck out the animal's eye in the dark and set it down before an object, clear and bright, a window against the sky. The outline of this image is engraved on the retina, visible to the naked eye. This excised eye is primitive camera, the retina's visual purple acts as emulsion.

Kühne, following his success with rabbits, was presented the head of a young guillotine victim. The eye was extracted and slit along the equator. The operation was performed in a special red and yellow room. Retina of the left eye offers a sharp but ambiguous image, impossible to define. He spent the next years in search for its meaning, the exact nature of the object, if it was an object.

Windows are eyes of the house. Peer out of your prison body, other peep in. Never a one-way traffic. Seeing always implies the possibility of damaged privacy, for as eyes reveal the huge external world, our own infinite internal spaces are opened for others.

What is the fate the eyes during sleep? They move constantly, like spectators in a theatre.

The pupils dilate during abnormal states. Drugs, madness, drunkenness, paralysis, exhaustion, hypnosis, vertigo, high sexual excitement. The eye finding its ocean after the idea of oceans has ended.

Enkidu was a wild man, an animal among animals. One day a woman exposed her nakedness to him at a watering hole, and he responded. That day he left with her to follow the arts of civilization.

Mates are chosen first by visual appeal. Not odour, rhythm, skin. It is an error to believe that the eye caress a woman. Is a woman constructed out of light or of skin? Her image is never real in the eye, it is engraved on the ends of the fingers.

In the Ars Magna, Great Work, the Alchemist creates the world in his retort.

The eyes are the genitals of perception, and they too have established a tyranny. They have usurped the authority of the other senses. The body becomes a thin awkward stalk to support the eye on its rounds.

Why should the eyes be called windows of soul and key to deepest human communion, and touch denied as mild collisions of flesh.

The body is not the house, it is the inside of the house.The blind copulate, eyes in their skin.
The eye is light at rest.

(Do we create light in the eye? Is light our own, or from the world?)

In Egyptian mythology the eye is symbol of Osiris, or from Horus; and the sun god Ra.

Ptah gave birth to men from his mouth, the gods from his eyes.

City-temple of Brak (3000 B.C.). Discovered thousands of small flat human faces of black and white alabaster, without nose, mouth, ears, but with engraved and carefully painted eyes. Called the Eye Temple: to house these offerings to a divinity.

Oedipus. Reality of her naked breasts. Her body. You have looked upon those you ought never to have looked. Eyes gouged with a broach from the dress of dead Jocasta.

Punish the eyes. Shrivelled breasts of an old woman. He is led from village to village by a young boy. And everywhere they wait on his words.

Tiresias, said to have spent seven years as a woman, came upon Athene in the forest, bathing. She darkened the intruding eyes.

Saul of Tarsus on the Road to Damascus. Blindness elevated him to St. Paul.
Why is blindness holy?

Alchemy offers man an original heroism. The Mani taught that man was created as a helper by the messenger of Supreme God of Light to assist by his life and efforts in gathering the scattered, thereby weakened, atoms of light and lead them upward. For light has shone into the darkness and wasted itself and is in grave danger of being swallowed wholly.

Man can assist in the salvation of light.

The process of transforming base metals into gold is called projection.

In dim light, form is sacrificed for light. In bright light, light is sacrificed for form.

Code of light
. The eye is sick. Pluck it out. The doctor removes the eye to save the body. To do this, he must sewer the optic nerve connecting eye with brain. Before anaesthesia, it was often reported that the pass of the scalped created light instead of pain.

Gradually, objects are constructed outside the body.

The eye arises from light, for light. Indifferent organs and surfaces evolve into their unique form. The fish is shaped by water, the bird by air, the worm by earth. The eye is a creature of fire.

Jim Morrison

Texto publicado na revista Eye Magazine, Abril 1968

Tradução aqui

Saturday 5 September 2009

AZUL ESPECTRAL, A queda





Björk (sessão fotográfica para o álbum Telegram) Nobuyoshi Araki, 1997


Escapam-se discretamente as desgraças,
Das árvores desabam, imensas,
Como os angustiados lábios que, quentes,
Mornos, degustam hábeis apetites
Como a fúria de espectros pantomimos
Vivos de desgraças inanimadas,
Cobiçam os castanhos dourados do suicídio outonal:
expectantes gravíticos.
Os vermes, ao rastejarem da língua externa à interna, ambíguos,
Descascam, em segredo, a pele velha do animal arbóreo
Que na obscuridade subsistia dos mesmos insectos póstumos,
escabrosos e grotescos,
De passos minúsculos sob o avesso tóxico da casca do tronco esquelético.
O ser das raízes, demónio infecto!

Valquíria


Post publicado n'O Bar do Ossian

Wednesday 26 August 2009

MAYHEM - Freezing Moon


Live at Wacken, 2004

Thursday 30 July 2009

O QUARTO (parte II)



Fotogramas do filme Possession, Andrzej Zulawski, 1981


Estou, atempadamente, na casa onde nasci, dissolvida num semi-amontoado de memórias. Assedio a minha entrada num protótipo de quarto que ilumina as escadas principais. Esta divisão não existe, só neste espaço. Nesta sala quadrangular monitorizada, as paredes são esconsas, os cantos biangulares – é como se oscilasse aleatoriamente no formato oblíquo. Dezenas de janelas mórficas na margem do tecto, – antes das paredes, depois dos monitores – permitem uma entrada substancial de luz no quarto onde estão penduradas telas aos tectos disformes. As telas estão imaculadamente pintadas, de um dadaísmo sem sentido, como se tivessem sido esborratadas por infantes psicóticos de mãos neuróticas e trémulas.
Num súbito romper do espaço, um corpo hirto, coberto de branco, um espectro afiado de ossos aquilinos, surge com uma bandeja prateada equilibrada sobre as unhas rectas dos dedos fátuos da mão esquerda, onde reserva aveludada carne crua, ensanguentada. Devoro o naco de carne com dentes de felino, precipitadamente. Entusiasmados salpicos de sangue ensopam as telas e a mácula roupa da figura esguia que não parece importar-se com a beleza escarlate do sangue, antes exibe um riso formal diante do casual festim visceral. Impetuosamente, desaparece na penumbra da janela quadriculada, exibido no monocromatismo do papel de parede apodrecido. Ao olhar na direcção oposta, outra criatura exibe-se na timidez do espaço fugaz e eu deixo cair a carne numa poça de sangue. Como é apetecível, demasiado estático, olhar vazio, opaco, cortante e morto. Sinto um apetite extremo de o consumir, como àquele bocado de carne crua agora a ser devorado pela poeira morta do chão.
[Fode-o!]
Numa previsão de milésimos de segundos, projecto os acontecimentos nos ecrãs monocromáticos: vejo-me despi-lo – dispo-o; vejo-o castrado – está castrado e coberto por uma espessa camada de borracha nuclear. Numa atitude escapatória, escarneço e sou embalada pelo riso que se transforma num excessivo e teátrico gutural, e, ainda assim, a criatura mantém-se vácua, trépida, dissolvendo-se numa pasta de carne imóvel.

Valquíria

Monday 15 June 2009

UMA BALA DE PORTUGUESISMO NO CRÂNIO - Desmembramentos



Calçada ao Carmo, Valquíria, 2008


Fujamos dos santos da Lisboa, eternamente cáustica, d’um mar de gente zombie, que finge estar viva por uma noite de intoxicação putrefacta, que desagua no rio rico de lodo escondido nas margens do fundo: cheira a merda! Os pensantes que povoam, artisticamente falando, o pensamento dos artistas, com cousas assemelhadas ao artístico que não chegam a ser, porque é colorido e é poluído e finge que é ecológico e pensa que tem algodão doce, farturas, sardinhas e porra nenhuma! As estátuas principais, com grades em volta, gritam as obras infindas do que está podre e não tem remendo possível, nem retirado do artista que pensa sê-lo projectado no ego da pátria bonita e imensamente gloriosa! Membros mutilados, enferrujados, sombreados, desesperados em frente de coffee-shops imitadoras do mundo ocidental onde só chegamos com uma máquina do tempo metamorfoseada em moeda desvalorizada, achatada! As bebidas chatas, iguais a tudo o que é banal, dispendiosas. O preço que pagamos pela cínica sofisticação! Se têm dinheiros que abundam, os inócuos nativos da civilização vampirizada com raízes empobrecidas em petróleo e energias alternativas, pagam! Se não tiverem, pagam igualmente com um empréstimo a longo prazo, com juros, com o sangue, com o esperma, com os filhos, com o espírito santo! Mesmo ao lado das sardinhas, os carros estacionados ao lado deste e do outro de tecnologia alemã pequena burguesa daquele que diz que ainda não o pagou, mas roubou a pastilha elástica ao vizinho do café da esquina que o viu nascer e correr e brincar nos bairros velhos e remendados! Àqueles que pensam que este país é o Camões que era zarolho e descobriu o caminho marítimo para a Índia, para trazer cânhamo para os idiotas nas páginas d’Os Lusiadas! Àqueles que pensam que este país é só fuga do norte, é só fado no centro e é só foda no sul! Àqueles que pensam que este país é só Pessoa sentado na cadeira, uma mensagem à Brasileira, e que o Álvaro, o Bernardo, o Alberto e o Ricardo são outros gajos quaisquer que sofrem de uma doença chamada heteronímia! Esqueçam os textos falaciosos escritos nas línguas dos nossos opositores. Esqueçam que somos inumanos prostituídos à precariedade, que nas calçadas a preto e branco batemos os saltos gastos, expectantes da melhoria da maioria minoritária. E esqueçam as nojentas politiquices vulgares de galináceos que abundam de cheiro nauseabundo as mesmas ruas onde festejamos o calor, os turistas e os pombos que nos cagam na cabeça!

Valquíria

Saturday 30 May 2009

A MENINA DOS OLHOS DE PRATA



David Lynch e Isabella Rossellini, Blue velvet, 1986


Tinham passado doze Outonos pela menina dos olhos de prata. Filha de pais, filha da súplica, prosperara muitos desgostos invernosos e sonhos de Primaveras utópicas. Ainda assim, continuava viva, e saltava de paraíso em paraíso. O resultado deste périplo, o quão terrivelmente poético, é o desgaste da alma até à sua perda irreversível. Desconsiderando tal facto, continuava a saltar de pedra em pedra, na aprazibilidade, primeiro um pé, depois o outro.
A menina dos olhos de prata sustentava um pequeno corpo débil, coberto por longos cabelos de ébano que a protegiam do frio, a cerejas pretas e bagas silvestres, e, ainda assim, temia ser peso supérfluo para dissolver uma dessas pedras e cair no vazio ocultado debaixo delas.
Um dia, a menina dos olhos de prata colocou diligentemente o seu pequeno pé esquerdo sobre uma das pedras lunares de um desses paraísos amiudados, e nesse semi-maravilhoso local deparou-se com o homem dos olhos de ónix que brincava com o abismo, enquanto balançava numa das pedras.
Por ele tinham passado o dobro dos Outonos. Também ele filho de pais, também ele filho da súplica, de antiguidades habituadas. O homem dos olhos de ónix havia tido o mesmo costume da menina dos olhos de prata: em tempos ancestrais havia percorrido todos e quaisquer paraísos deste e daquele lugar, até se aperceber que por eles tinha passado repetidamente, até descobrir que nestes havia perdido um ínfimo pedaço de alma até à total dissipação.
Os olhos de prata da menina prenderam-se nos olhos de ónix do homem, imediatamente depois de se derreterem e formarem cada linha do seu rosto e cada fragmento corpóreo e incorpóreo do seu ser. Grande, mas modesto. Grosseiro, mas belo. Foi o que pensou a menina dos olhos de prata, e mais não pensou, manteve-se impávida, um pé sobre a pedra da entrada.
O homem dos olhos de ónix arraigou-se na fragilidade do ser que se apresentava com um pé na entrada, à pedra pousado, o outro na maldade anterior de todos os mundos. Nunca te vi aqui, disse o homem. Nunca estive aqui, respondeu a menina, Não passei por este inferno... Contestou-lhe o costume, Este hábito privar-te-á da tua alma, sabes? Porque teimas em fazê-lo? Estou consciente desse fenómeno, mas aceito que é a minha punição de tanto encanto encher a alma, ao passo que, da mesma forma, dela me privo. A menina dos olhos de prata maravilhou-o com a afirmação. Contudo, o homem dos olhos de ónix achou detestável a submissão da pequena menina a tão ignóbil perda, Podes ficar comigo e brincar com o abismo, queres? Ele também brinca connosco. É o que eu faço todos os dias, acho. Julgo que este lugar é maravilhoso, se eu pudesse apreciar a sua beleza, disse, sem sorrir. O homem dos olhos de ónix achava que tinha perdido a alma no dia em que decidiu desistir de saltar os mundos e viver naquelas pedras flutuantes, porque perdeu a capacidade de apreciar as circunstâncias circundantes. Mas um sentimento morno afligia-lhe agora o peito ao sentir a presença da menina dos olhos de prata. E quando olhou para o abismo no sentido de afastar esse sentimento, o abismo pareceu-lhe um terrível inimigo. Não quero ficar aqui, disse a menina, enquanto o pé que estava pousado na malvadez anterior saltava para a pedra seguinte, Aqui não há cerejas pretas. Mas há no interior, retorquiu o homem, Mas eu gosto de passear na margem, justificou a menina. Então eu vou buscar cerejas negras ao interior e tu ficas aqui a brincar comigo só por uns momentos. Pode ser? Sugeriu. A menina dos olhos de prata concordou, Mas só por um bocado.
O homem dos olhos de ónix nunca tinha ido ao interior, nunca tinha colhido cerejas pretas, nunca tinha comido cerejas pretas, nunca tinha tido companhia para balançar naquelas pedras. Ficaram naquele espaço a apreciar a companhia. Até que a menina avisou que estava quase na altura de ir, começava a aborrecer-se. O homem reparou então que a ideia de continuar naquele lugar sem a menina estava a invadir-lhe o pensamento, e o desespero começou a conquistar o corpo, desde o interior dos ossos até à pele, que, apesar de robusto, trepidou.
A menina dos olhos de prata avançou para a pedra onde o homem pousava sentado. Este levantou-se rapidamente e ela saltou para a mesma pedra. Vem comigo, pediu a menina. A pedra começou a ceder com o peso de ambos, antes que ele pudesse responder. O homem olhou assustado para os olhos de prata da menina e ela olhou para os olhos de ónix do homem por um tempo que pareceu eterno. A pedra estava a ceder. O homem dos olhos de ónix beijou apaixonadamente os olhos de prata da menina e saltou para a preservar da inevitável queda. Deixou a menina a balançar na pedra que, em lágrimas prateadas, saltou atrás dele ao encontro do abismo.
Restou uma pedra. Várias pedras e cerejas pretas. Num paraíso intoxicado.

Valquíria

Saturday 9 May 2009

ESQUELETOS





Uma quimera refugiada
Nos lábios daquela pessoa
Que te enterra na ignorância
E espera acomodar-te
No desespero desorientado.
É particularmente curiosa
A alotriofagia do coração humano.
Pegadas de leveza morta,
Como um cigarro pulmonar te envenena
O pobre sangue.
Vestes vestidos verdes, arco-íris,
Brancos, beijos de Judas.
Regozijastes penas mútuas, indecentemente.

Vês?
Consegues saborear o que a sábia repreensão
Benévola dos insectos putrefaz?
O Homem é sábio, capaz de raciocínio abstracto,
Deve-o à devoração
Daquilo que o devora no fim,
Depois de nascermos virados para o outro lado
Das partes.

Valquíria





Fotogramas do filme La chute de la maison Usher, Jean Epstein, 1928 (conto original de Edgar Allan Poe, adaptação de Luis Buñuel)


post publicado n'O Bar do Ossian

Saturday 25 April 2009

SUBJUGADOS



sem título, Nobuyoshi Araki, 1997


No centro da depressão, onde reside a loucura e desperta a inconsciência, cigarros radioactivos destroem os lábios secos de poetas desfeitos; o fumo penetra o álcool que seca.
Nos vestidos negros, pedaços de céu nocturno aguardam a chuva em bocados ácidos. Porque cadeiras arrumam corpos moles, disformes, ávidos pela mortificação alheia, as palavras acabadas refutam-se no ar e desconjugam destinos assemelhados ao belo. E o que é sê-lo quando o pensamento subjectivo é generalizado?
Como uma prostituta com as pernas partidas, não obstante, inacostumada à violência, engolimos axiomas comprimidos, e existem inexactidões neste quadro vivo, meio morto, que desprezamos. Dividimo-nos subdivididos – pode bem ser verdadeiro o nosso sadismo, ou amamo-nos tanto que nos consumimos ao masoquismo com olhos secos em permanente vigília. É a desunião pessimista, uma coisa apodrecida, sepultada, saudosa. De cara abafada à terra, imprescindivelmente veneramos nosso ânus, sodomizados. Uma eterna vez a imagem da serpente falecida enojou o homem, é a epidemia da presente era desapercebermos a mesma linguagem gestual.

Valquíria


sem título, Nobuyoshi Araki, 1970

69YK, Nobuyoshi Araki, 2009

post previamente publicado n'O Bar do Ossian

Tuesday 7 April 2009


Mask, Bauhaus, 1981

Monday 16 March 2009

DE VANU SINUOSU


De um curto momento efémero o desespero.
Despojei-me de vitalidade e orgulho e pureza
Alojo-me em bocados de recantos, de corpos,
De partes incorpóreas,
Em todos os teus poros distribuo-me,
Parto-me em pedaços,
Desfaço-me em partículas de pó,
Milhões microscópicos colados em acetatos.
Tactos tacteiam cactos espicaçando impressões d’alma.
Inexorável senão da masturbação do eterno cinismo.
Ó Ego terrível!

Sentei-me no lugar da mulher do olho de vidro,
Vi na bola de cristal a pouca terra de homem nenhum
Reflectida a carne que dela exala,
Perfurada por prata velha,
Fina,
Elástica, ornamentos que a infectam de prazer
E assustam a licantropia crapulosa,
De cabelos,
Linhas de cetim longas asas de corvo,
(Re)traída por tudo o que brilhante é.



(um segredo)
Lembro-me de um episódio familiar, mas que tem algo particular: crianças estranhas correm por ali, são feitas de pão e encostam-se aos passeios para absorverem vitalidade. Depois é o lado direito da minha cabeça que no interior é preenchida por caixas de plástico. Pulsa o sangue que arde, as derrete.

Valquíria

Xteriors XI, Desiree Dolron, 2008


Xteriors I, Desiree Dolron, 2008

Saturday 28 February 2009

FETUS


Vivemos para extinguir o egotismo:
Na valsa moderna da epidemia neurótica;
No medo da morte e da avidez erótica;
Na farsa inócua do desespero pela solidão.
Calados.
Desesperamos, timbrados,
A jactância animal
Despertamos os finados
Do externo espectro colossal.
E o figurativo corte vulgariza
O suicídio da humanidade
E do niilismo generalizado.

Porquê, esquizofrenia infiel,
Seres ímpios rastejam pela inoperância? –
Mecanismo de defesa inalterável.
Um sórdido amontoado de pele
Onde agulhas embalam, habituais,
O remédio que locupleta de mel
As eternas veias dos nossos Pais.

Valquíria

Joven virgen autosodomizada por su propia castidad, Salvador Dalí, 1954

Muchacha en la ventana, Salvador Dalí, 1925

Post publicado n'O Bar do Ossian

Tuesday 24 February 2009

PLACEBO


Protège moi, Placebo live in Paris, 2003

Saturday 14 February 2009

FRACÇÕES



The Rape, Edgar Degas, 1869


Não discerniu a exactidão do tempo, da força. Exemplarmente, descontinuou a precisão da carne em detrimento do espectacular exemplo da finitude. Mendigou-lhe a palavra, Classifica-nos!, Não podes simplesmente negar-me, Puta! – Cospe-se. A cobra rasteja perante o linear amiudado da feminilidade da imolada, Detestável excremento! Detestável feminilidade a minha, pureza de beleza anulada – [Choro interior]. Sangue, poderoso sangue, negro, espesso e vivo sangue. Pernas balançam, tremem, limpam-no. Água orvalhada dissolve-se na pele amortecida de palidez, Impetuosos sinistros meus, meus, meus. O transgressor temeu as consequências do próprio acto perpetrado no instante passado. O livro de desgraças identificativas. Velhas escadas rangentes separam existências. A esclerótica amarelada de doença revoltou-se na órbita, a mirada desconhecida. Abominável memória.

Valquíria



Twin Peaks - Fire walk with me, David Lynch, 1992

Sunday 18 January 2009

BURACO NA ÁRVORE


Pessoas, pequenas colunas, gatos passam, desfeitos os pedaços gastos elaborados pela precisão. Eloquentemente acumulados os despojos estratégicos da virtude desesperada e o ritual hipnótico mecânico. Até isto é um castelo!
Depois.
Em cubos enormemente microscópicos, aniquila-se o senso de indigência em disfarçados passos sem concatenação, quando é óbvia a necessidade, se militantes sensores da lei impedirem um túnel venoso. E as individualidades cadavéricas de amarelo descorado afiguram-se a formicídeos. Passam em ruas-edifício envelhecidas pela erosão do tempo que passa demasiadamente rápido. Filas oficiosas aguardam a sopa dos pobres paga com sangue.

Antes.
De forma ridícula, distingue-se no filme a fina linha fronteiriça entre a realidade e os toscos cenários. Abstracção. Objectos familiares são rigores absurdos, imprescindíveis objectos de transposição por um mal maior. Na prata amolgada repousa o pó - tenuíssimas partículas de beleza infinda - e só isso brilha, polvilhado o mundo de descontentamentos muitos.
A vida é um mundo de olhos descontentados.
Estes repousam em cafés aguados. Repousamos cadeiras húmidas. E o homem de barbas velhas estende a manga pedinte rasgada que descobre a ponta dos dedos. E dedilhamos níquel em relevo, desconhecida a verdade que se trata afinal da terra que nas eventualidades do tempo o cobrirá. E mudos porque não queremos saber que não quereremos.
Porque o tenebroso olhar dos estranhos esconde habitualmente a nossa morte.
E as mãos. Disse porque se abstrai da própria pobreza. Porque receia este ser o seu reflexo, oferece ambíguas miudezas. A sobreposição das mãos é criatura do medo.

Valquíria




Sem título, da série O buraco na Árvore, Valquíria, 2009


Post publicado n'O Bar do Ossian

Sunday 11 January 2009

CARTOLAS DE CARNE VIVA


Para sempre ocupada a emendar pedaços partidos da minha peça interna, motor da minha vida, apareces numa onda assustadora de felicidade. Porque tudo o que revolta é pavoroso, porque me assusta o oceano que trazes em ti.
Dispuseste-me nos olhos telas que gritara nunca querer ver, na penumbra de uma sala onde sons inoportunos nos confundiram. Ouvíamos rodas e motor parados entre os nossos suores, gritos e sabores. Escreveste-me Amor nos cabelos que cobriram a ansiedade por luxúria quando me roubaste de um vampiro obscuro. E a tua assustadora multidão onde queres que me perca, onde me perco por ti... O palpitar de olhos atentos aos beijos talvez apaixonados e o nosso espaço é pálido. Momentaneamente resgatada do meu mundo de palcos de monstruosidades inócuas!
A máquina, antes languidamente cristalizada, volta a habitar o frágil quotidiano. E eu espero esperanças desesperadas, receosas. Porque a velha triste canção, esmurrada em cordas de antepassados enforcados, liquefaz-se em palavras racionalmente lógicas.
Com a tua expressão prematura de ilusionista, retiras carne viva da cartola que te acompanha o coração, e a realidade é tudo o que me mostras. A tua presença insensata, como a projecção da minha revolta, alucinou as minhas necessidades. A tua índole de beleza desprovida de ornatos extrapola a tua externa existência como um halo. Obliterei o meu passado porque és aquilo que ninguém sabe fingir em mim.

Valquíria



The Doors - Spanish Caravan, live in Europe, 1968

Ao meu homem do mar

Sunday 4 January 2009

DEMÓNIO ENTRE HUMANOS


Toby Dammit, Federico Fellini, segmento de Trois Histoires Extraordinaires d'Edgar Poe, 1968

A vida: um circo de pessoas. Pequenas. Feias. Estranhas. Pedras humilhadas, aleatoriamente colocadas nas paredes do interior da gruta humana. Quase sempre conservadas no horror liquefeito.

Valquíria

Saturday 27 December 2008

CIRCUNLÓQUIOS DE MORTE




A lua luz negra nua no céu coberto de lamúrias. A fraca luminosidade de pobres candeeiros produz imagens indistinguíveis nos chãos de espelho das desesperadas ruas e becos húmidos, onde paulatinamente um homem de cartola passeia o corpo lento. Destina-se uma vítima plausível. Modus operandi. Ferve-lhe a toxicidade do absíntio no estômago e nos nervos cerebrais ópticos que optimizam a visão nocturna. O homem julga-se um ser que não existe, provido de poderes indistinguíveis! A procura é inebriante. Enquanto caminha, a base das botas produz sons na calçada morta. Calca minúsculas pedras, desfazem-se em pó pelos pesados passos. A minha excitantemente detestável imagem feminina cruza-se no seu caminho, finalmente!
Vejo-o. E ele é realmente uma criatura abismal! É tudo aquilo que imagina ser em oportunas alucinações! Um monstro horroroso com face de porcelana e língua afiada. Mesmo de costas vejo-o aproximar-se de mim, o pavoroso cheiro a essência de ópio! Aproxima-se. Cheira-me os fios de cabelo asa de corvo perfumados de vida, entrelaça-os aos dedos, e eu paraliso. O seu longo braço cerca-me, sufoca-me com um lenço de éter rendilhado e eu perco os sentidos. O meu corpo é transportado como uma carcaça de um animal esfolado para um qualquer covil nefasto.
Portas surdas. Após uma interminável espera que retomasse os sentidos, o homem da cartola realiza por fim que estou morta! Ao analisar com o dedo a minha jugular, sente a escassez de pulsação. O sangue que não jorrou após desferir o corte. Saiu espesso, lento... Foi inesperado! A expectação da fusão entre a lâmina e a minha carne, agora em estado de rigor mortis, resultou numa desilusão. A impossibilidade de ouvir um último suspiro, de cheirar a carne fresca e o sangue límpido.
Num estado muito avançado de cortesia, o homem da cartola fez deslizar a desiludida mão enluvada sobre o espesso sangue vertido na mesa metálica, suposto panorama da minha morte. Quando chegado o suco à pele, já frio, vibrou um arrepio de comoção.
O homem descalçou as luvas lentamente, dedo a dedo. Retirou a cartola protestante de suor. Destapou-se da capa preta que o cobria. Delicadamente, desfez o lenço envolto ao fino pescoço, despiu a camisa negra e repousou a mão extraordinariamente quente no centro da minha barriga. Fê-la caminhar, lisa e tenaz, até ao meu pescoço, agarrando-o, e aguardou. Depois deslizou novamente até ao meu ventre, até às minhas pernas e afastou-as. Num processo sobejamente rápido, o homem destituído das vestes e em êxtase, numa atitude de um desespero necrófilo, deita-se sobre o meu corpo ao mesmo tempo que nele principia uma feroz violação. O homem pensa ouvir um gemido sair-me da boca, mas rápido deduz tratar-se de um suspiro post mortem, de algum ar reservado e agora expulso, provocado pelos movimentos bruscos. Neste pavor luxuriante e enquanto me puxa os cabelos, olha-me os olhos profundamente vidrados e inanimados, e a imagem excita ainda mais a sua emoção. Desesperadamente inundado na excitação, não percebe o movimento dos meus membros. Levanto as pernas secas e com as coxas aperto ferozmente as ancas do profanador, enquanto os meus braços envolvem o pescoço dele que, como acto irreflectido, tenta desprender-se, sem sucesso. Mas a força que inflijo é atroz e desmedida. De olhar desprovido de vida e qualquer expressão, pressiono com os cotovelos o fino e frágil pescoço do delicado homem. Ele grita um grito medonho num misto de excitação, dor e horror, enquanto contempla um leve sorriso mortiço na minha boca crua que o olha. Até não existir qualquer som proveniente da garganta do homem da cartola, até deixar de existir ar para expirar dos seus pulmões. O frágil pescoço quebra entre os meus braços, e ambos, mortos amolecemos lívidos, num fluído soporífico.

Valquíria




Fotogramas do filme Phantasmagoria: The Visions of Lewis Carroll, Marilyn Manson, 2010


Post publicado n'O Bar do Ossian

Monday 22 December 2008

OTROP ED ECILÀC MU E ANERGNAG|GANGRENA E UM CÁLICE DE PORTO



Black veil with circular frame, Susan Fenton, 2000


As nuvens passam nas cortinas e nas rasgadas unhas que chovem. Repugnam-te aquelas noites em que o desespero sangrava de uma ferida aberta? Parece-me que sim. E a altruísta vontade de felinos escondidos atrás do sofá verde. Arranham a bota no interior da parede.
“Tu e ela”.
Recortávamos cartolinas verdes e nelas colávamos brilhos que roubávamos de desconhecidos impacientes. Mas assim que o papel pobre reagia à humidade, os nossos olhos aprendiam brilhantes insanidades. E das palavras histéricas e acentuadas, sem embrulhos nem laços, rebuçados debruçados, mas como murros nos nossos estômagos, regurgitadas da estupidez castiçal da nossa madre.

Três leves corpos entristecidos partilham um pêssego estagnado de onde surge um animal que o devora. Desde sempre soubemos não querermos chegar a ser como aqueles que se recriaram em necessidades perante os nossos olhos. Lembras-te? Porque eu não me lembro de te ter dito, mas sei que sabíamos. Éramos pequenos génios abandonados. Pequenos génios necromantes, vazios de interjeições. E éramos gatos que subiam a telhados onde guardávamos segredos, aproximávamos gafanhotos às pestanas onde balançavam. Subíamos, descíamos e fugíamos daquelas escadas infindas que agora moram no meu onírico. Madeira velha, madeira bichada. Quando é que elas me vão deixar?
Agora tu perdeste nas tuas gavetas memórias que finges esquecidas. Seleccionaste a agradabilidade da tua infância e restou um resto de nada. E eu sirvo de caixa servente das tuas gavetas memórias que no meu interior colocaste, empilhadas, inadequadas. O teu processo defensivo levou-te à sanidade em que insistes viver com chocolates e agora somos o oposto que sempre fomos. Mas antes partilhávamos a mesma terra entre os dedos dos pés. Isso é possivelmente felicidade?

Valquíria

Dedicado à minha irmã

Wednesday 17 December 2008

WE CAN BE HEROES...


Christiane F. - Wir Kinder vom Bahnhof Zoo, Uli Edel, 1981

Sunday 14 December 2008


isn't love dubious?


Dita II, watercolour painting by Marilyn Manson

Here's some FUCK scene...

Thursday 11 December 2008

PATER NOSTER



Medieval (autor desconhecido)

Não existe um templo, existem ruínas, por trás de exuberantes fachadas, de lado da perspectiva banal. Da parte de dentro das paredes, percevejos em estruturais madeiras de podres ares, excêntricos percevejos mordomos. E em pedras nobres e gastas, que águas repousam? Nos históricos moimentos consagrados respira-se o peso das mágoas, angústias descarregam os seus horrores nas costas das estruturas exaustas, que, gastas, murmuram em ecos tortuosas almas.

- In nomine Patris...

Recalcam-se, retraem-se, reclamam-se apetites sob ameaçadores ídolos de matéria ordinária. E veneram ósculos impiedosos que abandonam no piso gelado. Renunciam posses que pensam inutilidades irrefutáveis, oferendas a ninguém onde se desintegram, onde se depauperam. Oblatos decrépitos! Fustigam assexos famintos, secam farsantes na pele nua da parte interna das vestes. E murmuram as falas sujeitadas.

- Et Filii...

Palco de sobranceria filantrópica, prostram-se análogos abomináveis. E curvados os corpos monótonos balançam sobre longitudinais bancadas de gelo que queima, enquanto lambem e ferem os dedos que apontam a ponta da página sacra. Silencioso o agudo grito grave que sai de fora para dentro à força da fraqueza, incongruentes dedos espalmam sem moldar minúsculas esferas sacramentadas. Finalmente desfazem em saliva grossa de totalidades o corpo circularmente oneroso de branco. Já brandam, desfeitos por dentro.

- Et Spiritus Sancti!

Valquíria


Post previamente publicado n'O Bar do Ossian

Saturday 6 December 2008


Dedicado à Antígona


Dancer in the Dark, Lars Von Trier, 2000


"They say is the last song, they don't know us, you see? It's only the last song if we let it be."

Friday 5 December 2008

LIBIDINOSO PRECÍPITE



Sem título, para o livro Sex de Madonna, fotografia Steven Meisel, direcção artística Fabien Baron


Numa cama de fétidos processos coloridos,
Na proporção de um espaço elevatório,
Existentes devaneios amorosos suprimidos
Como um todo, de uma massa de corpos no crematório.
Esconde o seu falo,
Fá-lo atrás de uma guitarra.
Gritara!
Um desejo doloroso de dor iminente
E, nu, sente
As frias bicudas carnes de estanho
Fustigadas pelas mãos de um estranho!

Valquíria


Tuesday 25 November 2008

SÁTIRA



Fotograma do filme Satyricon, Federico Fellini, 1969


A picotar as estranhas entranhas, animais vasculham alcatrões do interior do nosso caminho. Os animais sobejam vontade de gritar às putas mudamente. Despojam inquietudes de prostitutas palavras, lavadas no esgoto.
Humanidade! Daquilo que os nus se vestem.
Passamos em frios, pautados espaços que são o interior daqueles que nele existem e vivem em relevos, absortos, sobrevivem abortos. E na intensidade dos cheiros, doce-amarga o ácido nas tuas veias. Vertem verdes descalços, pisam vidros e, insensíveis, continuam a caminhar. Derretem mãos em mamas nádegas, desfeitas em dinheiro.
Defeitos! Daquilo que os nus se vestem.
E as eloquentes palavras vestidas de desdentadas bocas e, ainda assim, vampíricas. Querem, usam, de objectos não passam, de plástico velho, corroído, quebrado. Caro, demasiado desvalorizado. E assim subestimam o inferno que pisam.
Loucura! Daquilo que os nus se vestem.
E contam níquel nas palmas sujas, desgostos pequenos, afogam-se em misérias de trapos pestilentos e lascivos. Rosa-lhe o choque de lábios moles, cabelo de palha dourada, cascos limados de céu. Divergem os passos em tortas pernas cravadas de veias.
Cadência! Daquilo que os nus se vestem.
Comovidamente, habitam ruas de um lado ao outro, no fim e no começo, e em linhas ténues de infelicidade pelos filhos, póstumos de droga, que assombram oceânicos subconscientes. Quando facas contornam, corpos escapam à vida. Ou as mãos ensanguentadas de assassinatos. Voam vírus por canais invisíveis e clamam picotar desesperadamente a carne.
Mortalidade! Daquilo que os nus se vestem.

Valquíria


Post previamente publicado n'O Bar do Ossian

Sunday 23 November 2008

O anjo ri-se enquanto três litros de sangue fogem do meu corpo, cada vez mais lânguido.
Corpo perdido numa qualquer linha de ferro subterrânea.



Teia-de-pânico: uma causa comum!



Aparece vindo do escuro, d'uma infância de subterfúgios.
Refúgios.



Sublinha-me as pálpebras dos olhos com a
ponta
da
afiada
faca.


Eyelined, A. W., 2006


Sublima-me, arma mortal nos meus cabelos de hera... Era uma vez as vísceras de Jesus e Maria Madalena afogando-se no seu sangue,
sangue
sangue
sangue

VEM-TE!
Uma,
duas,
três vezes puta!
Filantrópico o coração relativamente aos outros órgãos!

Valquíria

Tuesday 4 November 2008

VOLUPTUOSU



Fotograma de Twin Peaks, David Lynch & Mark Frost, 1990


No surrealismo do teu interior,
magnífico e aterrador,
lambe a minha cripta gelada
até que ela se encontre, fustigada,
suada, mastigada...

Num espectáculo fúnebre
somos actores e plateia inúmera,
a minha vagina burlesca e lúgubre
morbidamente enterra-nos na penumbra.

E então, neste sepulcro angustiante
sente-se o frio odor do nojo
a repugnância, o asco e o luto incessante
colam-se às paredes como despojo!

Valquíria


Fotograma de Twin Peaks, David Lynch & Mark Frost, 1990

Friday 31 October 2008

HUMILHAÇÃO



In Voluptate Mors, Salvador Dalí & Philippe Halsman, 1951


Um carro fúnebre atravessa o cemitério labiríntico da nação anulada. Linha morta fátua, inebria o círculo flamejante dos Olhos da finada. E o carro caminha lentamente, perdido, sine praetensu de se aproximar da última cova. Sem se detectar um único movimento, o corpo sem vida revolta-se em fotogramas polípticos de ansiedade e desespero pelo inesperado repouso final. Sentados em veludo púrpura, os vivos que o acompanham desprezam a presença enclausurada no féretro, festejam bebidas em cristais partidos, casacos de pêlo, tecidos leves, livros de histórias de papel, concebem cenários impudicos em relevo, mamilos que espreitam as línguas que choram numa Ode orgíaca aos amados finados.
Cabeças decepadas transvestidas repousam em frascos de vidro convergente repleto de líquido conservante florescente, auto transformam o espaço, humedecido, onde as criaturas vivas se envolvem na orgia. Maquilhagem que se despega como pele da carne, despega-se como tinta velha em pestanas postiças de metal, que, podres, acompanham as feições deformadas. E ali ficou, na eterna expressão da morte, a acompanhar a gula canibal de ninguém. Ao passo que a mortalha do morto mortiço, escarlate escudado esverdeado, aniquila-se nas cinzas.

Valquíria


Post previamente publicado n'O Bar do Ossian

Monday 27 October 2008

OS NOSSOS FINADOS



Caveira da Capela, Valquíria, 2008


Detesto escrever sobre ossos que encurtam a distância da morte. Três passos dão entre o nascimento da adoração e o frio flácido falecimento, onde na fálica ostentação em ruínas nos diminuímos, célere crescemos nas penumbras cálcicas e trémulas.
Onde uma criança e um pai, talvez, se adoram até na morte que os acompanha difícil e desesperadamente na eternidade que um dia acabou. Depois escrevemos compulsiva e freneticamente sobre os corpos secos de carne, aos quais, crentes, antepassados fanáticos rezaram, vegetativos, a ténue vida, com pena de esta findar, sobejando a doce inveja da imortalidade do terrível ícone que, em forma de objecto, dança estático no centro. Porque vincarmos o absurdo torna mais aceitável a realidade.

“Nós ossos que aqui estamos, pelos vossos esperamos.”

Valquíria


Post previamente publicado n'O Bar do Ossian

Thursday 9 October 2008

VAMPIROS LENTOS


Fotograma do filme Nosferatu: Phantom der Nacht, 1979



Dentro de mim mesma, tacteio as paredes internas, infernos moles. Visto-me, calço-me, de humana, permitindo-me passear entre outros humanóides semelhantes, sob, dentro ou acima. Desassossego-me no vácuo vazio dos poços oculares de meus reflexos.

Vejo uma paisagem apocalíptica da janela onde, prostrada, reparo existirem outras de mim mesma noutras absolutamente distintas janelas onde semelhantes cortinas de cascatas de sangue coagulado esvoaçam. E na paisagem do apocalipse, vampiros secos abominam ressacas previsíveis de sangue. A lei seca de vinho, de álcool, de sangue. A lacuna de vivos quase petrifica estes seres penosamente sôfregos. Coitados! Secam em posições estáticas, cambaleantes. As cartolas, ruínas onde o vento se molda ao som do pó. As unhas rachadas, entrelaçam-se em proeminentes laços de regaços falecidos. A palidez de um branco inexistente. E os dentes, que descem até aos queixos, brilham de brilhos tão atraentes que corvos completam este quadro abismal, como abutres de diamantes ou leves companheiros.

Das janelas, os meus egos variáveis vislumbram, e as espantadas bocas abertas e oblíquas, em expressões únicas. Do interior delas, dedos caminham ao encontro do exterior, depois os braços, a cabeça seguindo-lhe todos os restos corporais, deslizam como num parto. E a minha roupa absurda de pele cai pesadamente no chão, num grito estridente, e tudo estremece. As janelas partem-se. Todos os egos se partem em pedaços e partículas de pó que são levadas pelo vendaval até às cartolas vampíricas, e cobrem a palidez da pele dos vampiros da palidez da minha pele. Detrás da janela estilhaçada, sobrevivo protegida pelos cortinados de sangue pegajoso. Enrugada, olho orgulhosos olhares que voam e fotografam os secos vampiros que dançam em cabides no Oeste apocalíptico, enquanto disparam estacas a partir de revolveres flácidos.

Valquíria

Saturday 4 October 2008


Eu doou. A minha pele líquida e viscosa... A minha carne, putrefacta, cai, seguindo o movimento de uma terra que a engole vorazmente, transforma-me em alimento... E aí me jazo, debaixo de uma campa de xisto que me penetra o crânio. Os meus pensamentos surgem em epitáfio, ninguém os lê, engolidos nos seus próprios egos.

Valquíria

Dancing Skeletons, Edward Burra, 1934

Ritual sanguinário: desmembra-se um corpo e logo se lhe restituem ao tronco solitário como que com medo da decomposição precoce. Tentativa frustrada - a amputação é um estado permanente - e, então, usam-se agrafos para a união, mas a pele nem se chega a tocar e a decomposição avança como se gritasse "TODO ESTE TRABALHO FOI EM VÃO!" de frustração... mas os membros assim ficam, formando um corpo agora falso de extremidades oxidáveis, membros que agora pingam, mortos, de um tronco, morto. A morte é para sempre, um estado permanente que não se agrafa com ferros ferrugentos.

Valquíria

Friday 26 September 2008

A PÊRA VERMELHA (ou a concepção da loucura)


Encostada ao frigorífico, ao sabor ácido/amargo amanteigado, desfizeram-se conscientes tubérculos na minha língua bifurcada de amontoados desgostos. A memória inflecte a pantera ruiva no telhado que projecta o pôr-do-sol, dedos da irmã enrugados fecham caixas de plástico no meu cérebro, animal metamorfoseando-se na caixa de mágicos horrores, a mulher de branco aos pés da cama não se casa, derrete a morte. O ventre, então à porta do cubo gelado, posiciona na mão, qual estátua estática esfíngica, arrogantemente, uma leve pêra de encarnado sanguíneo, como se fosse comum. E eu grito gritos internos, abafados no abismo da loucura enquanto dedilho a pele do pescoço indiferentemente enrugada como velhos razoáveis.

Infortúnios infantis. Corro mais de uma dezena de degraus ao encontro de alguém real que me escreva na testa a verdade, enquanto toco mais uma vez o pescoço da loucura. Depois, ao som da lua, entro na montanha russa, e antes de estreitar o onírico, vou detestando aquele mosaico axadrezado de negro, amarelo e vermelho. Este choca-se com a minha visão interna, e aí encontra o cubo que me sobrepõe o encéfalo. Milhares de milhões de imagens da velocidade em persona, indigesta, indistinguíveis como patologias nas vozes da ignorância, surgem. E tudo é estranho num jardim de flores imaginárias cujas cores se adjectivam.

Quando foi o tempo em que comeste arroz de tomate com salsichas e defecaste a moeda de cinquenta centavos? O mesmo tempo em que confundiste a realidade alucinada dos sonhos verídicos, criança.

Valquíria

Thursday 25 September 2008



Pêra vermelha com fígado e batatas cozidas, Valquíria, 2004

QUERO!


Tu que me deixaste a alma profanada de nada,
És tudo o que me falta, és o ar.
Por ti anseio viver sem a vil censura ensanguentada!
Sonhar sem ter que acordar.
Morrer num sonho eterno.
Não quero a letargia deste infortunado viver efémero!
O vazio que não me incomoda, é o que resta deste eu fétido.
Incomoda-me estar vazia de ti, não vazia do teu amor prefabricado.
Somos espíritos transportados pelo vento sobre um campo tétrico
E no sabor da minha cor translúcida, na textura do teu som aveludado.
Tudo o que tínhamos era do nada que teremos.

Quero saber o que te fiz,
Quero abrir o teu peito com garras vis
De mãos dedilhadas de discórdia e olho-de-perdiz,
Subtrair-te o sangue, o teu coração,
Fazer dele um bocado da tua mente demente de paixão.
Quero a tua alma e o teu chão.
Quero a coragem que em ti perdi.
Quero que, lentamente, me apagues em ti,
Que te apagues em mim.
E quero desaparecer, tornar-me irracional,
Voar na permanência de um vento outonal.
Quero dormir e sonhar, para sempre viver em inconscientes!
Roubar os teus sonhos para sentir o que sentes!


Valquíria

Monday 22 September 2008

E VOLTANDO A FALAR NA SABEDORIA


É esta uma alucinação provocada pelo ácido da vida. Um cérebro enxaguado, lavado e centrifugado, picado, feito em pedaços, em sementes plantadas ao lado de batatas carnívoras cozidas, esmagadas, aleitadas e a realidade é um empadão.
Que querem senão alimentarem-se da frivolidade e suarem o que de vós humanos faz num qualquer ginásio que cheira a perda?
És lindo, és decrépito, velho asqueroso! Gelado derretido, chupa-chupa caralhos... Bebes o esperma ou tem muitas calorias? Puxa cada pêlo, electrocuta-te, corta-te, queima-te, abre-te, tira, abre-te, põe, pinta-te, injecta-te, ou pede a alguém que o faça por ti com grandes doses de anestesia. Para que te sintas, que te odeies. Dá uma foda e deita fora. “Foi tão mau para ti como foi para mim? Não tenho livro de instruções.” Diz ela, despenteadas as palavras, infinitas, diminutas. “Por favor, alguém me queira sem me usar!”
Com este hálito de longevidade alcoolizada, agora, para entristecer a verdade.
Insónias, vícios menos benzos mais álcool, um estrondo de um peso morto no chão. “Não me mexi, foi todo o resto.”
De repente, foi como se um aspirador desproporcional sugasse tudo o que me rodeia. A estupidez é a infância da letargia? Gostavas de me ver nua, louco? Tenho bengalas que me sustentam a carne flácida, gelatina ilusória, dali.
Produz, consome e defeca. Tem um enterro na merda que produzes. Precisamos de outras razões para vos odiar?

Valquíria

Thursday 18 September 2008

SOCI SACIEDADE


Corpos confundidos numa massa de carne e pasta plasmática, emanam vapores de arrogância bucólica, entorpecida. Gritam, asmáticos, orgasmos psicológicos niilistas. Horrores de um terrível nojo gutural provindo de sarjetas entupidas de vísceras decompostas na estrada da existência. Estamos todos aqui ou numa rodopiante estagnação? A afogarmo-nos no eterno rio de tristeza e de merda e, ainda assim, sorrimos o sorriso ciente de que não é inconsciente. O último branqueamento que cobre de ouro, prata a podridão! Um asilo confortável onde escondemos o que somos, e mostramos um gémeo robótico, o cúmulo da sofisticação. Chama-se doce! Usa chaves em portas que não abre... Fornicador! Está orgulhoso por não fazer parte da perversão elástica generalizada. Exibindo rugas permanentemente plastificadas de silicone e petróleo… E sangue.

Valquíria

LAURA I


Observando paredes de Carmesim. Envolta num cheiro a cigarros apagados, e com substancial ingestão de um arco-íris a preto e branco de narcóticos, dispo o minúsculo tecido preto expansível que tão escassamente cobre as partes essenciais. O rubor das minhas carnes transpira num género equivalente. O som grave de cordas esticadas como forcas, que percorre o mesmo caminho da monotonia infinitas vezes, grita sexo violento. Indicação real da socialização neste cubículo. Sob a mesa, uma língua desconhecida entre as minhas pernas. Obrigas-me a fazer-te penetrares o teu membro cortante, horrível, delicioso e assustador na minha indolente fibra mucosa.

Valquíria

Wednesday 10 September 2008

CARTA IMAGINADA


Caro Fernando,

Decidi escrever-te, mas que te dizer? Para talvez falar-te de um sonho que tive em sono leve e tardio… Sonhei que caminhava, por ruas que eu e tu tão bem conhecemos, num estado alterado. Outras pessoas, que já não o eram, também por lá caminhavam. Estas criaturas, digo-te, eram agora estátuas de cera! Nas suas caras, assustadoramente inexpressivas, faltava-lhes a boca, e pedras cinzentas estavam no lugar dos olhos.
Que fiz eu perante tal cenário? Fugi. Fugi porque temi. Estava calor e supus que em breve estas estátuas começassem a derreter. E então meti-me em becos estreitos, fugi! Busquei lugares onde já não se pudesse ver o horror daquele cenário, e temi. Sim, tive medo. Medo de mim próprio. Estava agora sozinho, mas continuei a fugir ao encontro da solidão como se esta fosse inevitável. Decidi falar-te deste sonho porque em quase nada se distingue da minha realidade.
Estimo as melhoras, meu caro.

Álvaro de Campos

(carta imaginada, de Álvaro de Campos a Fernando Pessoa, numa aula de português da noite de 28 de Novembro de 2006)

Valquíria

Saturday 6 September 2008

DE MIM E DE TI


Recortes de palavras dos meus livros predilectos. Colados em saliva pastosa que escorre, lentamente, entre vales carnudos de sangue, sobre terreno liso como seda, branca de pureza sem fim. E, no interior dos teus olhos, salgada água que, sem querer, escapa explodindo o teu sensível ser. Podias deixar de me amar e de queimar tudo o que te é querido para me lançares sinais de fumo que constantemente ignoro. Leste em tempos livros predilectos em mim que te feriram e que te amaram. Tens agora de mim leves recordações que pensas amar, memórias de inexistentes momentos, de sonhos que confundes com uma realidade, de uma utopia tão irreal quão afiadas são as lâminas que me cortam.

Abruptamente escrevo sobre ti com palavras ultra-violentas, violento-te. Tento sentir esse poder de, violentamente, invadir um corpo com força inumana, presente apenas na animalesca força do masculu. Tenho vontade de o canibalizar para nele me tornar, num filho da violência, intermitência.

(Uma conjuntura óssea, desmaterializa-se pelo fogo, num crematório pessoal. A inferiorização intelectual, o espectro anal, carnal, bifurcal.)

Valquíria

ANIVERSÁRIO DA AMIZADE QUE MORREU


Collants apertadas na cabeça dos dedos da mão do coração. A partilha, que terminou há milénios atrás, detestável partilha revelou-se agora finada. Revelei-te, entre mares de lágrimas, a minha perdição. No limbo dançámos tangos tangíveis lânguidos de preferências abismais. Partilhas o meu sangue, detestei-te e agora quero apenas apagar-te.

Valquíria

Thursday 4 September 2008

PANEGIAR A MORTE


Sem gota de sangue, sem calor
Trespassas-me o corpo com flor
Negra, entristecida,
Qual morte rendida?

Tecida a teia da minha vida, os tentáculos
Que, friamente, me apalpam a carne intragável,
Escoriam-ma! Essas unhas amedrontam-me os espectáculos
Numa moldura ilegível e inimaginável.
Com a morte da vida engano a morte...
Sinto sangue correr-me o corpo, rios insinuantes
E cada curva dos meus órgãos, o corte
De vísceras malditas, alucinantes
Que, falsamente, sustentam a minha sorte.

Valquíria

Sunday 31 August 2008

BORDERLINE MONÓLOGOS


Sou a filha, a irmã, a amiga, a colega, a conhecida, a vizinha, a foda, a companhia, só por acaso. E quando sou Pessoa?! Nesta puta de vida não consigo ser nem Pessoa!
Eu, eu e eu. Ser narcisista, megalómano das emoções alheias, contribuinte de nada. A minha alma está febril: não é minha, não sou eu. Não és tu nem aquele que não vê. O Tomás da realidade ilusória, sem som nem imagem mesmo que ficcionados! Explosão de uma fibra capilar dourada... sou mero nada!

Valquíria

BONECA DE LIXO


Belladonna (oil on board), Lori Earley, 2004

Senti a minha face de porcelana abstracta ao tocá-la.
Sei que tenho algum poder, ainda que fútil.
Algum poder carnal?
Como o que uma mulher tem sobre um homem.
Como um ser humano tem sobre outro ser humano.
Sobre seres humanos, espécie ininteligível.

Poder canibal?
O meu poder degradar-se-á algum dia.
Autofagia?
Horas, minutos – tudo o que me falta?
Aquela parede pintada de simplesmente nada.
Túlipas pretas abundam o meu íris, e traços de lírios amarelos,
laivos tenebrosos em ébano morto.
Agora olham aquela face de porcelana abstracta reflectida, empalidecida.

Valquíria

SOLILÓQUIO A MEU TIO


Uma garrafa vazia e o brilho do cristal que flutua nos teus olhos secos, vidrados. A substância corre em todas as tuas veias e posso sentir-lhe o cheiro. É um aroma de apodrecimento como se já estivesses enterrado (e estás desde que invadiste pela primeira vez o teu corpo). Se te tocasse a tua pele tornar-se-ia a minha pele. Amarela, porquê? Se é algo que não tem cor, ou vida de qualquer espécie, portanto não é mortal nem imortal. Só existe porque também exististe e por sua causa deixaste de existir... Tu e o exército seguinte na milésima guerra mundial do inconsciente humano! Foda-se! Por que as folhas caem? Porque morreram. É simples e frágil a morte, e é também ela imortal como a memória que temos de tudo o que morreu... Mortalmente imortal. E está deveras insatisfeita, a pobre!

Valquíria