Saturday 27 December 2008

CIRCUNLÓQUIOS DE MORTE




A lua luz negra nua no céu coberto de lamúrias. A fraca luminosidade de pobres candeeiros produz imagens indistinguíveis nos chãos de espelho das desesperadas ruas e becos húmidos, onde paulatinamente um homem de cartola passeia o corpo lento. Destina-se uma vítima plausível. Modus operandi. Ferve-lhe a toxicidade do absíntio no estômago e nos nervos cerebrais ópticos que optimizam a visão nocturna. O homem julga-se um ser que não existe, provido de poderes indistinguíveis! A procura é inebriante. Enquanto caminha, a base das botas produz sons na calçada morta. Calca minúsculas pedras, desfazem-se em pó pelos pesados passos. A minha excitantemente detestável imagem feminina cruza-se no seu caminho, finalmente!
Vejo-o. E ele é realmente uma criatura abismal! É tudo aquilo que imagina ser em oportunas alucinações! Um monstro horroroso com face de porcelana e língua afiada. Mesmo de costas vejo-o aproximar-se de mim, o pavoroso cheiro a essência de ópio! Aproxima-se. Cheira-me os fios de cabelo asa de corvo perfumados de vida, entrelaça-os aos dedos, e eu paraliso. O seu longo braço cerca-me, sufoca-me com um lenço de éter rendilhado e eu perco os sentidos. O meu corpo é transportado como uma carcaça de um animal esfolado para um qualquer covil nefasto.
Portas surdas. Após uma interminável espera que retomasse os sentidos, o homem da cartola realiza por fim que estou morta! Ao analisar com o dedo a minha jugular, sente a escassez de pulsação. O sangue que não jorrou após desferir o corte. Saiu espesso, lento... Foi inesperado! A expectação da fusão entre a lâmina e a minha carne, agora em estado de rigor mortis, resultou numa desilusão. A impossibilidade de ouvir um último suspiro, de cheirar a carne fresca e o sangue límpido.
Num estado muito avançado de cortesia, o homem da cartola fez deslizar a desiludida mão enluvada sobre o espesso sangue vertido na mesa metálica, suposto panorama da minha morte. Quando chegado o suco à pele, já frio, vibrou um arrepio de comoção.
O homem descalçou as luvas lentamente, dedo a dedo. Retirou a cartola protestante de suor. Destapou-se da capa preta que o cobria. Delicadamente, desfez o lenço envolto ao fino pescoço, despiu a camisa negra e repousou a mão extraordinariamente quente no centro da minha barriga. Fê-la caminhar, lisa e tenaz, até ao meu pescoço, agarrando-o, e aguardou. Depois deslizou novamente até ao meu ventre, até às minhas pernas e afastou-as. Num processo sobejamente rápido, o homem destituído das vestes e em êxtase, numa atitude de um desespero necrófilo, deita-se sobre o meu corpo ao mesmo tempo que nele principia uma feroz violação. O homem pensa ouvir um gemido sair-me da boca, mas rápido deduz tratar-se de um suspiro post mortem, de algum ar reservado e agora expulso, provocado pelos movimentos bruscos. Neste pavor luxuriante e enquanto me puxa os cabelos, olha-me os olhos profundamente vidrados e inanimados, e a imagem excita ainda mais a sua emoção. Desesperadamente inundado na excitação, não percebe o movimento dos meus membros. Levanto as pernas secas e com as coxas aperto ferozmente as ancas do profanador, enquanto os meus braços envolvem o pescoço dele que, como acto irreflectido, tenta desprender-se, sem sucesso. Mas a força que inflijo é atroz e desmedida. De olhar desprovido de vida e qualquer expressão, pressiono com os cotovelos o fino e frágil pescoço do delicado homem. Ele grita um grito medonho num misto de excitação, dor e horror, enquanto contempla um leve sorriso mortiço na minha boca crua que o olha. Até não existir qualquer som proveniente da garganta do homem da cartola, até deixar de existir ar para expirar dos seus pulmões. O frágil pescoço quebra entre os meus braços, e ambos, mortos amolecemos lívidos, num fluído soporífico.

Valquíria




Fotogramas do filme Phantasmagoria: The Visions of Lewis Carroll, Marilyn Manson, 2010


Post publicado n'O Bar do Ossian

8 comments:

  1. Muito Anne Rice,
    tenebrosamente excitante,
    uma cavalgada digna de Wagner.


    "She rules my house with an iron fist...
    ...
    Yeah, you know the story of the viper
    It's long and lean with poison tooth
    Well they're hissing under the floorboards
    Hanging down in bunches from my roof"

    Boa Passagem

    *

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  2. "Para criar uma obra-prima da literatura, dois poderes precisam estar presentes: o poder do homem(mulher) e o poder do momento."
    (Matthew Arnold)


    Tu tiveste esses dois momentos Abraços.

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  3. Por acaso é uma autora que não me atrai, 0.04. Mas este conto também não:(

    Obrigada, Gothicum. Contudo, creio não reunir ainda esses dois poderes...

    A todos uma boa passagem!

    Beijos

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  4. BOM ANO, coelha do mal! Morre e ressuscita, e não te desforres nos gatitos, que não conhecem a maldade gótica deste mundo... :)

    Dark kiss.

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  5. Um conto inebriante, com o poder de prender o leitor nos seus recônditos obscuros.
    Gostei!

    Cumprimentos ^^

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  6. Agora só esfolo gatinhos caseiros, Lord;)

    Miaus:B

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  7. "Lust is the medium by which each sex tries to enslave the other"

    ?

    (in C. Paglia, Sexual pPrsonae)

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